quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Missa da razão


    Outro dia, num país não muito distante, entrei numa pequena igreja aparentemente católica, onde uma missa estava a se iniciar. Sentado nas últimas bancas, notei curiosa inscrição gravada estilosamente em alto relevo na frente do altar:

BE AN ATHEIST

    Na parede atrás da mesa, bem diante da assembleia de fiéis, havia um enorme mosaico retratando uma explosão. Na parte de baixo, um crucifixo feito de um metal cor de prata, de uns quarenta centímetros de altura, ficava pregado no mosaico.
    Mas não era um crucifixo igual aos normalmente vistos: não tinha um Cristo pregado, nem sangue, nem a menor cena de morte. Havia, sim, no centro da cruz, a letra H, com quatro raios de luz partindo da parte de traz, cada raio contendo um símbolo das quatro operações elementares da matemática: +, -, ×, ÷.
    As imagens dos nichos não retratavam necessariamente santos, mas cientistas famosos. Claramente reconheci uma imagem de Copérnico, outra de Galileu, um busto de Kepler. A maior daquelas esculturas retratava Isaac Newton. A mais intrigante, porém, era uma de Erastóstenes esmagando as cabeças de Platão e Aristóteles com uma lança.
    Um fiel que sentava ao meu lado percebeu o quanto eu olhava com aspecto indagador o crucifixo; estava evidente que eu nunca havia entrado naquela igreja antes nem dela ter algum dia ouvido falar. Então o fiel simplesmente respondeu, em inglês, a pergunta que meus olhos faziam.
    – O H é o símbolo do hidrogênio, átomo mais abundante no universo. Deste simples átomo todos os outros se formaram no núcleo das primeiras estrelas. Por isso os raios de luz, tendo o símbolo do hidrogênio no centro de onde eles partem: simbolizam o brilho das estrelas, fusão nuclear responsável pela montagem de todos os elementos químicos existentes. Os símbolos matemáticos elementares lembram que a criação inteira é um processo matemático, que podemos perfeitamente compreender e estudar.
    A missa começou. Fizemos silêncio para ouvir o padre paramentado. Notei que as palavras eram exatamente as mesmas do Missal Romano em língua inglesa.
    – O inglês é a língua da moderna ciência, o novo idioma universal, o novo latim – disse-me o fiel, murmurando.
    Exatamente o mesmo rito e palavras do Missal, pensava eu acompanhando a celebração. A única diferença é que, onde se deveria dizer Deus, se diz Cosmo; onde se deveria dizer Espírito Santo, se diz Universo.
    Na primeira e na segunda leituras eram lidos trechos das obras de Pitágoras, Erastóstenes, Hiparco, Herón de Alexandria, entre outros estudiosos da época dos Ptolomeus e da mesma nacionalidade grega. Os Salmos eram trechos da Ilíada.
    Em vez do Evangelho, cada dia se lia uma passagem diferente do Diálogo sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo, famosa obra de Galileu.
    Aguçada atenção depositamos agora na homilia, lecionada pelo padre como uma aula:
    – Prestamos culto ao Universo com esta nossa vida, continuação do Big Bang. A vida nada mais é que a consciência do Cosmo, os olhos e a razão do Universo, que pode olhar a si próprio e se reconhecer. Simplificando, somos Universo. A vida é o produto final e máximo da criação. Mas não foi um deus que criou o Universo. Este sempre existiu, desde quando era constituído de uma única partícula de matéria. Antes dessa partícula, sempre existiu o Universo de forma imaterial, que não é um ser, e sim uma existência pura e eterna, sem vontade, sem consciência. O que existe, é, e a razão de ser da eterna existência pura originou, isenta da falsa ideia de desordem universal conhecida por acaso, a partícula inicial do mundo no qual estamos mergulhados. Antes de o Universo se materializar, houve uma necessidade de materialização, o que não exclui a imaterialização que sempre existiu e sempre está presente. A vida é um prosseguimento da necessidade. Por isso, ninguém morre. Quando o nosso corpo tem a necessidade de interromper seu funcionamento por completo, continuamos a ser Universo material e imaterial. A morte só se daria se o Universo deixasse de existir, coisa impossível para a própria existência sem princípio e sem fim natural por não haver um nada capaz de destruir ou conter a essência da existência.
    “Claro que a verdade não está em mim, nem no que discorro; assim como o Universo, a verdade é relativa. Em outras palavras, a única verdade sagrada é que não existe verdade sagrada. Vocês são livres para discordar de qualquer ponto da doutrina desta Igreja, até exijo que encontrem algo para discordar.
“Galileu”.
    Todos replicaram:
    – Galilei.
    Após uns dois minutos de total silêncio, o sacerdote recitou o Credo:
    – Creio em um só Cosmo, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Creio em um só Senhor, Jesus Cristo...
    – Por que ele fala que crê em Jesus Cristo, depois de ter dito tudo isso?! – perguntei, sussurrando ao fiel do meu lado.
    – Jesus é o nosso símbolo da ciência – respondeu o fiel, também num sussurro.
    – Filho Unigênito do Cosmo...
    – Pois a ciência vem do Cosmo.
    – ...nascido do Pai antes de todos os séculos: Cosmo do Cosmo, luz da luz, Cosmo verdadeiro do Cosmo verdadeiro, gerado, não criado; consubstancial ao Pai.
    – Isso porque a ciência, simbolizada por Cristo, provém do Cosmo. Melhor dizendo, ela nada mais é que o próprio Cosmo traduzido em equações e leis para que possamos compreendê-lo – dizia o fiel, explicando-me cada ponto da profissão de fé.
    – Por ele todas as coisas foram feitas – continuava o padre a recitar. – E por nós, homens, e para a nossa salvação, desceu dos céus e se encarnou, pelas leis do Universo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem.
    – Ou seja, a ciência se encarnou em nós. Virem Maria simboliza a humanidade.
    – Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado.
    – Significa que o pecado, aliado ao misticismo dos nossos antepassados, chegaram a assassinar a ciência nos homens, deixando o mundo por um milênio e meio abandonado às trevas da ignorância.
    – Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras, e subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai.
    – Todavia, veio o Renascimento, e readquirimos a noção de que o domínio da ciência nos conduz às estrelas e ao infinito e pode nos tornar imortais. Assim, a ciência ressuscitou em nós.
    – E de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o seu reino não terá fim.
    – Significa que um novo Renascimento acontecerá na história humana, bem maior que o do século XV. É a esperança de que, um dia, o reino da ciência fará do mundo o paraíso sonhado.
    – Creio no Universo, Senhor que dá a vida, e que procede do Pai e do Filho; e com o Pai e o Filho é adorado e glorificado: ele que falou pelos profetas. Creio na Igreja...
    – Igreja somos todos nós que cultivamos a ciência.
    – ...una, santa, católica e apostólica. Professo um só batismo para a remissão dos pecados.
    – Pecado é a ausência do cultivo da ciência e o batismo é a educação científica.
    – E espero a ressurreição dos mortos...
    – O dia em que todos os religiosos se tornarão ateus e passarão a ser cientistas.
    – ...e a vida do mundo que há de vir.
    “Galileu”.
    – Galilei – disseram todos, concluindo a profissão de fé.
    A liturgia eucarística segue o mesmo padrão: Deus é substituído por Cosmo e Espírito Santo, por Universo. Acontece o rito de consagração e tudo mais. No entanto, em vez de hóstias, é consagrada uma folha contendo a equação do dia. Essa equação é partilhada, distribuída em cópias a todos os fiéis, que fazem filas para irem buscá-la no altar e voltam aos seus lugares para responder o pequeno exercício cuja fórmula envolve a equação consagrada.
    No decorrer de três anos litúrgicos, todas as equações da física são consagradas, partilhadas e respondidas: passam pelas leis de Newton, de Kepler, a lei de Hooke, de Stevin, de Biot-Savart, atravessam toda a Cinemática, Movimentos variados e uniformemente variados, Dinâmica, Óptica, Relatividade... O mundo inteiro da física. A catequese, evidentemente, gira em torno desta ciência.
    Acabada a missa, que durou exatamente sessenta minutos cronometrados, fui obrigado a escrever cinquenta linhas tendo como tema “a presença de grandes cientistas na nossa vida cotidiana” (qualquer um que assistisse àquela celebração pela primeira vez só podia sair da igreja depois de fazer isso). Se minha redação fosse aprovada pela cúria, eu poderia voltar quantas vezes quisesse; se não, somente depois de um ano me seria permitido pôr os pés dentro da igreja outra vez, para fazer outra redação no final da missa.
    Ainda bem que meu texto foi aprovado e pude voltar lá quantas vezes quisesse.