sexta-feira, 29 de outubro de 2010

No princípio

    “Em primeiro lugar, não foi Deus que criou o mundo, foi o Diabo... [...] Foi o Tinhoso que criou o mundo; mas Deus, que lhe leu no pensamento, deixou-lhe as mãos livres, cuidando somente de corrigir ou atenuar a obra, a fim de que ao próprio mal não ficasse a desesperança da salvação ou do benefício. E a ação divina mostrou-se logo porque, tendo o Tinhoso criado as trevas, Deus criou a luz, e assim se fez o primeiro dia. No segundo dia, em que foram criadas as águas, nasceram as tempestades e os furacões; mas as brisas da tarde baixaram do pensamento divino. No terceiro dia foi feita a terra, e brotaram dela os vegetais mas só os vegetais sem fruto nem flor, os espinhosos, as ervas que matam como a cicuta; Deus, porém, crio as árvores frutíferas e os vegetais que nutrem ou encantam. E tendo o Tinhoso cavado abismos e cavernas na terra, Deus fez o sol, a lua e as estrelas; tal foi a obra do quarto dia. No quinto foram criados os animais da terra, da água e do ar. Chegamos ao sexto dia, e aqui peço que redobrem de atenção.”
    Trecho do conto Adão e Eva, de Machado de Assis. Para saber do resto, visite a biblioteca mais próxima.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Teofania


10 de outubro

    Hoje estive presenciando ao Santa Cruz Moda Cup, grande evento dedicado aos amantes do ciclismo. Várias modalidades competem, com ciclistas vindos de pontos diversos do estado e do país.
    Uma das apresentações mais apreciadas são as acrobacias feitas por uma equipe de ciclistas profissionais, com manobras do maior grau de radicalidade. Tudo isso a céu aberto, debaixo do sol impiedoso, típico do clima santacruzense.
Enquanto eu assistia a tudo, um forte brilho chamou minha atenção. Vinha dos olhos de uma das meninas que ficava no pódio, condecorando com medalhas os ciclistas chegados. Eu já tinha dito noutra ocasião (talvez no Twitter), que em Santa Cruz não é difícil encontrar garotas belas. As três do pódio eram belíssimas, mas aquela em particular era um fenômeno, um poema camoniano, uma ninfa do Tejo, uma divindade.
    Jamais eu havia ficado frente a frente com criatura tão bonita. Jamais mesmo! Seus olhos eram... não sei... eu via neles o azul dos mares, o verde da Amazônia, o prata do céu estrelado, o cinza da Lua, o brilho das nebulosas. Olhando-os, acredite, eu ouvia o som de uma cascata, mas uma cascata de luz viva.
    O vento soprava os cabelos dela e ela, sem parar, alisava-os. Que cabelos tão lindos! Por isso o vento fazia questão de sacudi-los. Pura seda castanha! Se eu fosse o vento, também faria o mesmo e podia deslizar por aquele rosto liso como porcelana.
    Eu a olhava sem parar, nenhuma atenção dedicava às manobras dos ciclistas. Alguns passavam, em suas bikes, voando de cabeça para baixo bem na minha frente, outros davam giros no ar em manobras perigosas, mas eu nem estava aí, só ela via. O sol estava literalmente derretendo o asfalto, mas, olhando-a, eu me sentia embaixo da sombra duma grande árvore, deitado numa rede e bebendo água de coco. Ela estava sob o mesmo sol que eu, os raios de luz que me tocavam, também tocavam ela!
    Os organizadores do evento esbanjaram genialidade quando puseram aquela divindade para receber no pódio os atletas chegados após dezenas de quilômetros de pedaladas. Para eles, era como aportar naquela ilha preparada por Vênus para receber as naus de Vasco da Gama durante o regresso das Índias. Imagino que muitos ciclistas, ao encarar a menina, assim pensaram: “Não é possível! Estou no Paraíso! Nem percebi o que me matou. Terá sido o desgaste físico desta corrida?”
    Eu queria ter tirado uma foto com ela; colocaria neste blog, e o leitor veria que o que falo é pura verdade. Mas eu estava apenas com um celular, cuja resolução da câmera não era o suficiente para captar aqueles traços divinos. Um bilhão de megapixels talvez conseguisse reproduzir as cores dos olhos dela e a beleza do seu rosto.
    Não me apaixonei por ela. Vendo-a, minha alma se ajoelhou, ou melhor, se prostrou no asfalto e, adorando-a, rezou: “Santo anjo do Senhor, minha zelosa guardadora, se a te me confiou a piedade divina!”
    Espero tornar a vê-la outro dia. Será que ela era mesmo real?

Credo in Deum


    O homem é, por natureza, um ser religioso. A inteligência o faz religiosamente proceder. É devido à enorme capacidade mental que o homem imagina o oculto, se é que seja possível imaginá-lo. Melhor dizendo, não temos controle total do nosso próprio cérebro; ele, com base na cultura aprendida, precisa preencher certos espaços, nos fazendo adotar práticas tipicamente religiosas. Em linhas gerais, é este o motivo que nos leva a querer acreditar num dado deus.
    Como o conceito de deus, Deus ou deuses é algo inserido na esfera social, são as religiões que, na maioria dos casos, entretêm as inteligências com a busca que estas vivem fazendo do oculto e inexplicável. Para quem se satisfaz com respostas estáticas, opiniões formadas, ideias redondas, comodismo mental, nada melhor que acolher o deus oferecido por determinada religião. O cérebro tem o que quer e a pessoa vive feliz em seu leito.
    Sendo Deus um fenômeno social, mais do que satisfazer suas necessidades psicológicas, cada pessoa que diz crê em Deus o faz por motivos que lhes são próprios.
    Há os que se agarram na crença do divino porque a receberam desde o berço. Muitos creem em Deus simplesmente porque cresceram pensando que ele existe, e acham melhor (e menos trabalhoso para suas intelectualidades) crer que não crer. A necessidade cerebral do oculto está saciada, para que mexer nela?
    Sendo a crença nada mais que crença, basta o menor abrir de olhos para o crente dar um chute na bunda de Deus (antropomorfismo meu!), pois Sua existência é puro folclore: o dia chega em que toda criança deixa de acreditar em Papai Noel. Os próprios religiosos comparam a fé à chama duma vela, e fazem bem. Existe coisa mais frágil que uma vela a queimar? Acreditar em ET’s que vivem numa sociedade tecnologicamente superior à nossa é muito mais persuasivo tendo por base as probabilidades matemáticas. Todo astrônomo acredita em aliens (se algum deles lhe disser que não, será porque não quer ser mal compreendido), pois conhece a imensidão do universo e sabe que é mais provável haver outros mundos como o nosso do que não.
    Há também os que dizem crê impelidos por interesses artísticos: frequentam uma igreja não por causa do deus, e sim por causa da música ou da dança. Lá, podem cantar, tocar e ter sua arte apreciada por outros.
Em verdade, ninguém segue uma religião desinteressadamente; a necessidade do oculto não depende de religiões estruturadas para ser saciada. Quando alguém entra numa das incontáveis igrejas deste mundo, está buscando qualquer coisa que só pode encontrar num meio social adequado, e as igrejas em geral são um prato cheio. Muito embora exista muitos que na igreja não fazem nada além de saciar sua sede de ocultismo, o que não deixa de ser interesse secundário: Me dê um deus aí, por favor, eu preciso agora!
    Outros afirmam crê movidos por interesses afetivos: buscam na comunidade religiosa paqueras, namoros, festas, diversão, ouso dizer comida, etc.
    Há os que dizem crê por interesses políticos: usam o usado nome de Deus para justificar atos próprios ou, às vezes, para aumentar a popularidade enquanto afirmam defender o nome da divindade imaginada pelo povo.
    Outros são ateus em segredo, como muitos religiosos, que, após tanto estudar, finalmente abriram os olhos, mas preferem fingir crê para evitar o escândalo do “clérigo ateu” ou coisa parecida. Ademais, estar à frente duma multidão faz qualquer um parecer e/ou sentir-se importante; traz algum status, as pessoas lhe veneram, chegam até a lhe ver como um enviado dos céus, você perde um pouco de humanidade e adquire alguma divindade. Caso você se candidate a prefeito ou vereador, é vitória certa!
    Outros têm tanto medo de ir para o inferno que dariam o carro novo por uma indulgência plenária. Seguem a religião mais por medo do Satanás do que por amor ao onipotente imaginado.
    É difícil existir uma religião que não realize algum tipo de lavagem cerebral. Esta se manifesta nas repetições de orações, de gestos, frases, nas pregações virtuosas dizendo sempre a mesma coisa por outras palavras, nos próprios ritos litúrgicos. Talvez seja isto o que faz um pastor estudioso continuar acreditando no deus da sua igreja: as constantes auto-lavagens que faz no próprio cérebro. A repetição faz você se convencer do que diz; mesmo que as palavras tratem de coisas que não existem, você acreditará que de fato existem. Quanto aos não-estudiosos, já se convenceram tanto que outra coisa não fazem sem pôr o divino no meio: gostam de pagar tudo o que é tipo de promessa, tais como caminhar descalço ou com pedras na cabeça; são capazes de brigar ou se intrigar por conta do deus querido; não vivem sem água benta; caem em êxtase durante encontros de orações; veem as escrituras sagradas e a doutrina da igreja como verdades inquestionáveis, etc.
    Há ainda os que buscam numa igreja interesses intelectuais. Exploram a filosofia milenar implícita na doutrina, contentes por estar aprendendo coisas que hoje não se ensinam mais em lugar algum e que há séculos atrás as pessoas já nasciam sabendo. Chegam até a rezar, pois leram que rezar devem. Esforçam-se por ter fé, suam por alimentá-la, mas depois caem na real e se dão conta de que passaram todo esse tempo andando em círculos. Veem que o trabalho mais perdido que um humano pode fazer debaixo do sol é perscrutar os ensinamentos de qualquer religião, a menos que você seja versado em estética medieval, especialista em música sacra, estudioso de arquitetura gótica, teólogo, arqueólogo, exegeta bíblico, em suma, aplicado a algum trabalho acadêmico, pois, desse modo, você se diverte e ganha dinheiro. Não busque respostas para suas aspirações filosóficas em doutrinas religiosas: chegará o momento em que você se arrependerá de ter passado tanto tempo estudando para nada, pois a lugar algum você chegou. A doutrina é ampla, porém cercada por altas muralhas. Percorridos todos os espaços, não há mais para onde ir, e você fica rodando feito uma barata envenenada.
    Mas uma coisa é certa: não há quem não duvide da existência de Deus – até mesmo Sua Santidade duvida, ou já chegou a duvidar. Essa dúvida é um pedido de socorro da razão, de vez em quando vindo implorar ao dono do cérebro que se levante do seu leito e vá abrir a janela do quarto para a luz entrar.
    Não tenha medo de ser ateu. O mundo moderno está cada vez mais desconectado das religiões. As crianças crescem conhecendo as respostas, a religião passa a ser, para elas, algo como um clube do qual tanto faz ser membro ou não. Sabem que neste mundo há coisas mais vivas para se aplicar a vida.
    Graças a Deus, o ateísmo está deixando de sofrer preconceitos. Simplesmente as pessoas não querem tocar no assunto Deus e, quando tocam, rapidamente dizem: “Sou ateu.” O interlocutor sorrir e o divino permanece em posição última, até sumir completamente das nossas vidas.
    Deus pode facilmente ser substituído por qualquer coisa; substituição é necessária para que a necessidade cerebral do ocultismo permaneça saciada. Se é a grande capacidade racional humana que nos leva a indagações sem respostas e, por isso, inventamos um ser divino que tudo responda, essa mesma capacidade racional, desde que devidamente educada, pode fabricar as mais variadas formas de idolatria e até suas próprias ilusões, pois o homem não vive sem ilusões. Não imagine um deus, existem meios mais eficazes e menos danosos de saciar sua mente. Fragmente a idolatria, adore a tudo e a nada você adorará; dessa forma, a idolatria, que está no seu cérebro como as sensações (medo, ânsia, alegria, etc.), ficará praticamente apagada, embora aja sem parar.
    Será que as outras formas de vida inteligente espalhadas pelo universo também cultivam algum tipo de religiosidade por serem capazes de pensar?

Sobre o voto


    Os brasileiros exageram quando o assunto é eleição. A mídia e as pessoas transformam um simples exercício de democracia em algo sobre-humano, mágico, poético, como se o que fôssemos escolher fossem novos deuses para povoar o Olimpo. Os que levam o assunto numa perspectiva mais matemática não enxergam outra coisa senão os números das pesquisas, com gráficos subindo e descendo, feito os botões duma mesa de mixagem de som.
    Nessa mesma linha de exagero estão frases como: “Votando, você muda o mundo”; “Cumpra o seu ideal de humanidade: vote”; “No voto você diz quem é.” É a velha história de canonizar uma ação e deixar de lado o processo construtor, desenrolado na história de modo complexo. É o agir dos pernilongos: se jogar contra a luz e se esquecer do meio iluminado.
    Eis onde brilha as luzes do discernimento do povo deste país: na adrenalina dum momento passageiro. Esta valorização do espetáculo trouxe a vergonhosa obrigatoriedade do voto. Grande desrespeito contra o povo é o voto obrigatório. Por que obrigá-lo? O que o país perderia se uma pequena parcela das pessoas pudesse ter o direito de não querer votar?
    Uma das frases mais ouvidas ou lidas nos órgãos públicos é “agora é lei”. Tal coisa agora é lei. Levar dois documentos no dia da votação agora é lei. Lei um carlh!... Isso não passa de um chute na cara do cidadão e, principalmente, de uma manifestação do atraso cultural de um país. Lei. O que não falta aqui são leis. São tantas que elas mesmas se entrelaçam na burocracia que delas nasce.
    Quando obrigam você a votar, estão atando uma corda ao seu pescoço e puxando-o para percorrer um caminho que você, desde que tenha juízo, sabe muito bem percorrer só. Dizendo isto, até pareço inimigo da cidadania! Sou uma espécie de ateu desta divindade chamada voto, cujo culto é imposto pelo “clero” nesta Idade Média que o país escolheu para vivenciar.
    É claro que a corrupção entre os políticos é grande, bem maior do que aparenta ser: a imprensa mostra uma parte, a outra permanece escondida e o resto o povo finge que não vê. Esse povo precisa mesmo dumas boas chicotadas de leis para aprender a se comportar. Mas nem só de chicotadas o animal é domesticado. Talvez a obrigatoriedade do voto, bem como todo esse exagero em torno do ato de votar, venham da mentalidade do pós-ditadura, estendida até os dias de hoje. Quando finalmente a gente reconquistou o direito do voto popular, endeusamos a ação da escolha dos candidatos. Além disso, votando, nos sentimos poderosos... É sadio imaginar coisas.