sábado, 17 de dezembro de 2011

Depois do livro

    Agora que finalmente vou publicar um livro de contos, preferi extinguir o blog Discovery. Não há mais motivos para que eu continue publicando contos na internet – se tudo der certo, pretendo lançar outros livros de contos ou até um romance.
    Todavia, como todo mundo que gosta de escrever, continuarei mantendo um blog ativo (este, o Atlantis). Aqui, escreverei o suficiente para dar sinais de vida aos meus leitores.
    Tenho um carinho especial por A bailarina inventora. Apesar de eu pensar em incluir esse conto em algum livro futuramente, ponho-o aqui na íntegra. É necessário.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Resultado duma breve insônia

Quase não consegui pegar no sono ontem pensando no que existiria antes do Big Bang.

Juntei esse pensamento às descobertas de Edwin Hubble sobre a expansão do universo, pensei na possibilidade de o nosso universo ser curvo numa quarta dimensão, imaginei se um dia o cosmo irá mesmo parar de se expandir e começar a recuar. Isso me fez questionar: se o Big Bang é o início de tudo e se o universo recuar até originar um Big Bang pelo inverso, quantos Big Bangs já devem ter ocorrido? Pensei até mesmo na assustadora hipótese de poder o universo não passar de um elétron fechado de um universo bem maior, assim como cada elétron do nosso universo pode ser um universo menor que o nosso.

Depois liguei essas cogitações à Teoria da Relatividade Geral de Einstein, pensei nos túneis abertos no espaço-tempo pela poderosíssima gravidade dos buracos negros e só conclui que precisamos pesquisar mais – a física precisa de muito mais respostas.

Então entrou em cena o LHC e os novos horizontes que essa espetacular experiência poderá abrir à física moderna, como a confirmação da existência do Bóson de Higgs. Cogitei, inclusive, sobre a teoria das cordas, que me fez questionar: será que ela pode nos dar a resposta sobre de onde veio o embrião do universo?

Em seguida, pensei no Papa dizendo curto e grosso “Deus é responsável pelo Big Bang!” e vi que Sua Santidade não faz a mínima ideia do que está acontecendo dentro daquele túnel na fronteira franco-suíça. Quando finalmente todos os dados do grande colisor de ádrons forem decodificados pela população de cientistas do Cern, daremos um importante passo no entendimento desse mistério sobre como do aparente “nada” surgiu uma explosão que deu origem a toda a matéria conhecida e desconhecida. E dizer que “Deus é responsável pelo Big Bang” passará a ser tão obsoleto quanto “a Terra é o centro do universo”. Alguém poderá dizer que o LHC não foi feito para descobrir como do nada pode surgir matéria e, de fato, não foi. O objetivo da experiência, como sabemos, é simular os primeiros instantes do Big Bang, quando, óbvio, a matéria já existia. Mas não duvido que o melhor entendimento dos primeiros segundos do cosmo possa originar uma ponte que nos conduza ao que havia antes de tudo.

O que o leitor acha de nomear ironicamente de Deus essa parte da física que vai tornar claro como do nada pode a matéria surgir? (cheguei a pensar exatamente isso naquela enfadonha noite sem sono) Seria uma justa homenagem a esse personagem criador imaginado pelos homens a tanto tempo!

Aí pensei em ciência e fé, notando que a Igreja se mostra “amiga” da astrofísica – chegando até a dizer que fé e ciência se harmonizam – porque o maior pesadelo dos eclesiásticos são as respostas que explicam o cosmo absolutamente livre da influência de qualquer forma de divindade.

Diante de tudo o que a ciência explica sobre a formação do universo, do Sistema Solar, da Terra, da vida, com os 4,5 bilhões de anos da evolução, do homem e da nossa história, aos crentes que não querem negar a ciência só resta dizer: “tudo isso só aconteceu porque foi a vontade de Deus!” Mas, em verdade, tal argumento religioso não convence cético algum...

Talvez o que mais reconforte os crentes instruídos seja a falta de explicação para o que “criou” os elementos que resultaram no Big Bang. Mas essa falta de explicação está com os dias contados.

O que fazer com Deus quando não houver mais o menor espaço seguro para colocá-lo, quando todos os pontos e mistérios do cosmo forem compreendidos por nós?

Pensei nos que afirmam ser Deus grande demais para a nossa “pequenina” mente, dizendo coisas como “nossa capacidade raciocinativa não é capaz de abranger o infinito, a eternidade que é Deus”. Provavelmente a chegada do sono me fez sentir pena desses que assim pensam, ou melhor, dos que não pensam, pois isso não é pensar.

Pensando sobre o que originou a matéria original, vem à nossa cabeça algo como Deus. Pensando sobre o que originou Deus, vem à nossa cabeça o homem (pois a resposta "Deus sempre existiu" não convence ninguém que tem o costume de pensar). Pensando sobre o homem, voltamos à questão sobre o que originou a matéria original, combustível do Big Bang. Então ficamos andando em círculos! Será que o nosso pensamento, como tudo no universo, está fadado a ser curvo? Assim como não é possível aceitar a explicação de um Deus que sempre existiu (afinal, eternidade não é um conceito científico e pertence apenas à esfera meramente religiosa), do mesmo modo não é possível aceitar a explicação de que o embrião cósmico de repente surgiu do nada que havia até então (ou melhor, do nada que não havia, pois nada não "há"). O certo é que tudo se contradiz quando recuamos nosso pensamento até aqui!

Talvez estejamos olhando para o lado errado quando nos perguntamos sobre o que originou a matéria original; talvez não seja a pergunta certa a se fazer; talvez seja um modo humano de tentar encontrar uma resposta que está acima da concepção humana atual; talvez o fato de estarmos presos a um mundo de 3 dimensões faça com que não consigamos enxergar a realidade plena da física. O que precisamos é verdadeiramente sintonizar nossa forma de pensar com o cosmo, compreender o que o constitui (o LHC é uma grande ajuda neste ponto). Não acredito que estejamos destinados a não compreender o infinito.

A você que até aqui está com a janela do seu navegador aberta neste blog, eu lhe digo: se sua mente não for capaz de abarcar uma coisa, é prova clara de que essa coisa não existe. Seria como somar dois mais dois e querer que o resultado fosse cinco. É possível que dois mais dois seja cinco, diz o crente, eu acredito! Nossa mente não compreende esse mistério, mas é possível; tenha fé. A decisão é sua. Você é quem decide no que acreditar ou não.

Quanto a mim, estou cada vez mais convencido de que não há nada real que a mente humana não seja capaz de entender.

Evoluímos para pensar, para abranger com nossa extrema capacidade mental o que quer que seja. Não existem limites capazes de impedir a marcha do nosso pensamento, nem distâncias, nem imensidões, nem infinitos que não possamos dominar.

O Gênese diz que, no princípio, o homem quis ser como Deus. Está chegando o dia em que de fato o seremos.

Os deuses seremos nós.

Santo clássico - Roma quer santos modernos

No dia 31 de maio de 2011, se completarão 14 anos da morte de Frei Damião, um dos poucos religiosos venerados como santo ainda em vida. Naturalmente, agora, passou a ser um dos candidatos à veneração nos altares. Será um desafio para Roma primeiro beatificar e depois canonizar um frade de santidade clássica, como os inúmeros da Idade Média.

O Vaticano almeja por exemplos de santidade modernos, que de algum modo provem ser possível praticar o catolicismo de cosmovisão contemporânea, inaugurado pelo Concílio Vaticano II, afinal, santos que seguram terço e trajam hábito a Igreja tem pra dar e vender. João Paulo II já disse que a Igreja precisa de santos que usem roupa jeans!

O povo que chama Frei Damião de santo é imenso, porém tem pouca mobilização política; é mais sofredor que atuante; nordestinos esquecidos pelo país, gente que participou das missões do religioso e que ainda carrega a mesma fé do tempo em que ouvia os sermões do capuchinho.

Essas pessoas foram educadas no cristianismo tradicional, que muitos julgavam extinto ou em via de extinção e que, segundo Leonardo Boff, “sobrevive na experiência religiosa do povo e encontrou em Frei Damião seu santo, seu profeta e seu analista transcendente.” Por isso os progressistas classificam o religioso de “ultrapassado”.

Ainda de acordo com o conceito do teólogo acima citado, diante do pensamento do novo cristianismo de cultura moderna, o povo da tradição não tem vez, perde sua identidade, não encontra valores.

Podemos dizer que o silêncio da maioria das lideranças religiosas e dos teólogos para com o exemplo de santidade do grande peregrino reside, no fundo, nisso: eles não se identificam mais com aquele tipo de cristianismo nem com seu portador, as camadas populares. Eis o maior obstáculo à canonização.

Não duvido que Chiara Lubich, por ter estado muito mais perto do Papa e por ter sido progressista, provavelmente seja canonizada antes do nosso Frei Damião, mesmo tendo morrido 11 anos depois do capuchinho.

Mas uma coisa não deixo de pensar: se Frei Damião não for canonizado, não sei o que é um santo. O Vaticano já canonizou pessoas “menos santas” que ele!

Se ainda fosse o povo que proclamasse os seus santos, o capuchinho já estava canonizado desde muito antes de falecer – sabemos que incontáveis milagres foram atribuídos a ele quando vivo.

Apesar de tudo, creio seguramente que Roma não vai deixar de canonizá-lo, pode ter plena certeza disso, nem que seja daqui a trezentos anos.

Posso dizer que eu, André Hilton, e milhões de outros nordestinos, tivemos contato direto com um santo da Igreja Católica quando ainda viva, ou melhor, vivo. Em Santa Cruz do Capibaribe (no tempo do Pe. Bianchi Xavier), acompanhei muitas missões suas quando criança; fui até tocado por sua pesada mão sobre a minha cabeça num dia em que ele me abençoou, na igreja de São Cristóvão. Lembro desse momento como se tivesse ocorrido ontem.

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Referência bibliográfica: OLIVEIRA, Gildson. Frei Damião: o santo das missões. São Paulo, FTD, 1997. p. 140-141

A destruição de uma cidade

Publicado por André Hilton originariamente no blog Discovery, em 23 de junho de 2010

As águas não baixam

Certo dia, eu disse que desejaria estar vivo para ver o fim do mundo, e o que nesta semana vi corresponde a um Apocalipse a nível regional. Não foi o fim da humanidade, do planeta, da natureza. Foi o fim duma cidade. Talvez fim seja uma palavra, além de curta, não muito precisa. O que presenciei foi uma destruição, um ensaio para o fim. O que é destruído, pode ser reerguido, mas o fim não tem remédio; portanto, adotemos de vez o termo destruição.

No blog Atlantis, relato o início da catástrofe, os primeiros episódios do que se tornaria um marco na história do pobre município palmarense. Tudo começou na tarde do dia 18 de junho, sexta-feira. As águas do rio Una invadiam as ruas do centro da cidade. Pouco depois escrevi O Una mostra mais uma vez do que é capaz. Chegada a noite, já se podia dizer que a maior cheia da história estava assolando a cidade. Pelas 22h00, nós do Santa Rosa começamos a nos preocupar, pois a água invadia a Rua Deputado Alcides Teixeira com uma intensidade bem maior que a sucedida na enchente de 2000. Às 23h00, fui olhar o Una na esquina da Avenida José Américo de Miranda – que já estava inteiramente submersa –, na entrada da cidade. Ninguém dormia, as ruas estavam cheias de gente, todo mundo apreensivo, assustado, admirado, surpreendido, era o que os olhares diziam. Voltei para casa às pressas, tive notícia de que a água começava a chegar à minha rua de maneira preocupante. Enquanto andava, os postes se apagaram, a eletricidade se foi, o escuro veio, tomando conta das ruas. Avistei flashs azulados no céu, como relâmpagos, mas eram os transformadores entrando em curto.

Mariana e principalmente Claudivã, seu namorado, entraram em pânico com a subida da água e nos forçaram a corrermos todos para outro local, abandonando a casa. Foi o que fizemos. Lanternas e faróis de carros iluminavam precariamente as ruas escuras. Caminhávamos nas trevas e sabíamos que estávamos no inferno. Primeiro, ficamos na casa da mãe de Cícero e, depois, na de Suelângela, onde passamos a noite até o dia amanhecer. Micke, meu cachorro, esteve o tempo inteiro conosco.

Noite sem fim

No começo da madrugada do dia 19, a água surpreende a expectativa de todos os moradores do bairro Santa Rosa e inunda metade da Rua Laboratorista Manoel Leite (e muitas outras) no trecho onde moramos, chegando à nossa residência muito felizmente com pouca intensidade, alcançando não mais que 15 centímetros de altura dentro de casa. Esta, com a igreja à frente, estava na extremidade do alcance da inundação, que se estendia daí para a esquina sul, onde a água atingiu profundidade bem maior.

A noite inteira foi passada à luz de velas e lanternas. Meu pai, o pai de Suelângela e eu erguemos para cima de mesas, cadeiras e camas a maior parte da mobília de casa, pouco antes de a água invadir os cômodos.

A única rádio que funcionava era a Cidade FM (frequência 87,9). A Quilombo (que foi destruída na catástrofe) e a Cultura estavam fora do ar. O assunto conversado pelo locutor era a cobertura da enchente, na qual as únicas informações de fato importantes eram a subida constante da água e, mais tarde, sua descida constante, iniciada por volta das 03h00.

Ainda na noite de sexta-feira, as duas pontes da BR 101, em processo de duplicação, vieram abaixo, como cartas de baralho, por conta da força da correnteza. Uma dessas pontes havia sido construída há menos de um ano e, a outra, fora totalmente reformada. Nessa noite sem fim, não preguei os olhos um segundo sequer. Ficamos todos em vigília na casa de Suelângela. Vi o sol se pôr sobre uma Palmares que estava afundando, e nascer sobre uma Palmares afundada.

A enchente do ano 2000 foi brincadeira de “gu-gu-dá-dá” comparada a esta. Residências do centro que há dez anos tiveram apenas o térreo coberto pela água, dessa vez foram invadidas um ou dois metros acima do piso do primeiro andar. Os ocupantes das casas invadidas imaginavam que esta enchente seria menor que a de 2000 ou, no máximo, igual. Mas foi superior. Presenciei, enquanto passeava pelo início do caos na tarde do dia 18, pessoas dizendo, às vezes em tom de brincadeira: “Essa vai ser maior que a outra!” Nunca pensei que tivessem tamanha e tão exata razão.

Antes das águas cobrirem por completo as lojas, muitos saques foram feitos, os bandidos, experientes desde a última enchente, não iam deixar tão valiosa oportunidade passar em branco.

As águas baixam

A manhã inteira do sábado (19) foi dedicada à limpeza da nossa casa. Quando nela chegamos, às 05h15, havia grande quantidade de entulho trazido pela cheia na calçada e ao pé do portão, que estava repleto de caramujos de todos os tamanhos. Boa parte da água, misturada com lama, ficou presa dentro de casa. Fizemos a limpeza sem o uso de botas (com exceção do meu pai). Eu mergulhava os pés naquela água extremamente contaminada. Mas não tinha outro jeito: tinha de mergulhá-los. Por volta das 09h00, a energia elétrica voltou. Ligamos a bomba, e a água do poço nos ajudou bastante. O serviço de água encanada do SAAE está impossibilitado de funcionar, com todo o presente caos.

Depois de limparmos a casa (não completamente, apenas tirado a lama do chão) fomos olhar o local da queda das duas pontes que atravessavam o Una para a BR 101 passar. Longa fila de caminhões se estendia na rodovia, impossibilitados de seguir viagem; habitantes dos bairros Newton Carneiro, Nova Palmares e Santa Rosa se infiltravam entre o engarrafamento. Perto de onde estávamos, bem ao lado de um dos postos de gasolina, um helicóptero de resgate pousou para abastecer.

Pela tarde, fui olhar as principais ruas inundadas (a água já havia baixado um pouco, sendo possível tomar o bairro Santa Luzia, único caminho por onde podíamos seguir para ter contato visual com o centro). Na Travessa Altino Fraga, era incessante o fluxo de veículos que descia da Rua Manoel Braga. Quase não consegui atravessar a fila. Peguei a ferrovia e, pelos trilhos, fui até à antiga estação. De lá, tive os primeiros contatos com a enchente. As águas tinham baixado bastante, mas ainda estavam acima do nível mais alto que alcançaram dez anos atrás. Tanta gente trafegava pela linha do trem, ao lado do Santo Onofre, que era impossível caminhar rápido. O ritmo dos passos era devagar quase parando. No Alto do Inglês, encontrei minha mãe e meu pai, que estavam com Mariana e minha avó. Vieram, como eu, olhar a inundação. A ladeira é o melhor ponto para se observar as cheias que de vez em quando destroem a cidade, por isso, vira camarote em todas as enchentes. De lá, seguimos, ainda, sempre pelos trilhos, até o pontilhão que atravessa a Avenida Frei Caneca. Em todos esses locais a multidão era uma só, admirando a destruição da própria cidade. Sem interrupção, helicópteros da Defesa Social de Pernambuco sobrevoavam as ruas, resgatando pessoas ilhadas. Os bombeiros tripulantes conduziam a vítima para dentro de uma cesta pendurada por um longo cabo abaixo da aeronave. Enquanto isso, na água, outros bombeiros, usando botes inflados, resgatavam gente ilhada em áreas mais acessíveis. Um helicóptero das forças armadas também prestava assistência. Tinha um motor de um barulho que, igual, eu só tinha ouvido no cinema.

O Campo da Rede e o Barreto Hall, ambos no Santa Luzia, ficaram funcionando como aeroportos dos helicópteros de resgate. Era onde as vítimas pousavam para receberem assistência médica se preciso. A população formava verdadeira plateia enquanto acompanhava de perto o incessante pouso e decolagem das aeronaves, veneradas pelo público como deuses. Para um povo carente de vida cultural, o espetáculo da chegada aérea de vítimas era o melhor de todos os teatros.

A face da desolação

Eu nunca havia presenciado a destruição de uma cidade. Acompanhei a enchente de 2000, mas, como já disse, aquela não passou de uma brincadeirinha da natureza. Esta deste ano fez o que bombas lançadas de aviões fariam. Bombas potentes, devastadoras! Quando, na tarde do domingo (20), saí com minha mãe, pés calçando botas, para visitar os locais que ficaram embaixo d’água, a sensação imediata que tive foi de visitar uma cidade atingida por forte terremoto ou bombardeada. O que teimava em nos lembrar que toda aquela devastação foi provocada por água era a lama negra que o tempo inteiro pisávamos e que, em algumas ruas, já virava poeira. Postes tombados por todos os lados, vários deles partidos, fios espalhados pelas ruas, os que ainda estavam no alto encontravam-se repletos de entulho neles dependurados. As ruas estavam quase intransitáveis para os pedestres. Em verdade, não se pode falar de pedestres, éramos visitantes de um mundo desconhecido. Casas destruídas inteiramente tinham suas paredes espalhadas pelo meio das ruas, cujo asfalto de quase todas teve boa parte arrancada do chão, formando grandes buracos em diversos lugares, alguns tão profundos que chegavam a comprometer a estrutura das casas que restavam de pé. Árvores arrancadas, quase enterradas em entulho, lama e areia. Em muitas ruas havia verdadeiros bancos de areia, trazidos e moldados pela correnteza. Carros novos destruídos, motos parcialmente enterradas em destroços, roupas, geladeiras, manequins de lojas, coisas de farmácias, tudo isso se via pelo caminho. Parte do madeirame do telhado de casas estava preso em árvores, que também tinham entre os galhos mesas e traves enormes. Ruas por onde sempre andei estavam irreconhecíveis, quem nunca as viu antes e visse uma fotografia delas, não acreditaria serem as mesmas. A biblioteca municipal foi o primeiro local que determinei para visitar. Fiquei feliz por vê-la no lugar onde sempre esteve e, principalmente, inteira. Tomara que os livros tenham se salvado.

Quando cheguei em frente a prefeitura, procurei a Praça Ismael Golveia e tomei tremendo susto quando percebi que ela simplesmente desapareceu e, no seu lugar, só restou uma colossal cratera, cheia de água na parte mais funda, onde se via um caminhão submerso de ponta cabeça, apenas com as rodas descobertas, e alguns outros carros menores também tragados pela abertura. Importantes estabelecimentos palmarenses desmoronaram por inteiro, tais como a AABB, a ACP, o colégio Fernando Augusto Pinto Ribeiro e a escola Peter Pan. Numerosas famílias perderam tudo. Muitos, achando que a água não iria atingir o primeiro andar, puseram aí seus pertences, mas a enchente chegou a cobrir prédios inteiros. As ruas de maior devastação, com maior número de construções desmoronadas, foram a Rua Capitão João Galdino, Avenida Visconde do Rio Branco, Rua Ascenso Ferreira, Avenida José Américo de Miranda, Rua Conselheiro João Alfredo, Rua Ulisses de A. de Oliveira e praticamente todas as ruas da parte do centro conhecida por Pedreiras. Essas são as que se situam mais próximas ao rio e, por isso, as que enfrentaram maior correnteza quando a água as invadiu.

A cidade se acabou completamente, sem exageros literários, como Pompeia, Porto Príncipe, Atlântida.

Alarme falso

Por volta das 17h00, no exato instante em que a Seleção da Costa do Marfim fez seu único gol no jogo contra a nossa Seleção, segunda rodada da Copa do Mundo, nesse exato instante a cidade de Palmares inteira – ou o que dela sobrou – entrou em pânico com o falso alarme de que a Barragem do Prata havia estourado. A gritaria em todas as ruas era total, gente desesperada correndo a puxar os cabelos, chorando, pessoas idosas sendo carregadas nos braços, motos em alta velocidade pelas calçadas, engarrafamentos com motoristas impacientes buzinando forte, pneus ciscando. E, em meio a tudo, a multidão correndo, todos se dirigindo a lugares elevados. Daqui de casa corremos todos também; saí levando Micke na coleira; minha irmã saiu chorando, levando um saco de roupas preparado de improviso; minha mãe saiu com o lorinho na gaiola; minha avó correu com uma caixa de sapatos onde guarda documentos importantes; meu pai acreditou na história, mas eu não. O tempo todo eu sabia que as pessoas tinham entrado em pânico levadas pela conversa de um boato, as rádios diziam sem parar que não existia nenhuma informação oficial, senão os primeiros a serem contactados, caso fosse verdade, teria sido os órgão da imprensa. Mesmo assim, corremos, junto com a multidão desesperada, para uma colina do nosso bairro e, na esquina da creche do Pe. Ângelo, iniciamos a subida. Alguns estavam tão nervosos, como o namorado da minha irmã, por exemplo, que chegavam a ver, imaginando, a água invadindo as ruas, o que os fazia correr ainda mais. Esse momento foi idêntico à cena do filme Impacto Profundo, onde Leo Biederman e Sarah Hotchner sobem uma colina para se protegerem da devastadora enchente provocada por uma onda gigante. No resto da cidade, pessoas morreram de infarto causado pelo medo, outras sofreram ferimentos. Ficamos algum tempo sentados numa calçada acima da Rua Rui Barbosa, até todo o povo se convencer do alarme falso e voltar para suas casas – quem ainda as tinha.

***

Vou terminar este relato falando do Cine Teatro Apolo. Sim, foi destruído mais uma vez. Tão ansioso que eu estava para assistir a uma peça nele!...

A ISS e eu

Publicado por André Hilton originariamente no blog Discovery, em 02 de dezembro de 2009.


    Eram 18h04. O sol tinha acabado de se pôr, mas o céu não estava de todo escuro. Duas luzes seguravam o resto do azul que começava a se dissipar com a vinda da escuridão da noite: uma era o crepúsculo, tomando conta de metade da abóbada; a outra era a lua, a imitar no leste o que o crepúsculo fazia no oeste. Era um início de noite todo iluminado pela natureza. Começavam a aparecer as primeiras estrelas. Não havia a menor nuvem. Quis o céu inteiro ser cenário perfeito para a passagem de tão importante personagem. Precisamente na hora esperada, ela entra em cena. 18h05. Ela desponta no norte, brilhando como se irradiasse luz própria. Vistos daqui de baixo, seus 27.700 quilômetros por hora são um simples caminhar elegante na longa passarela celeste. A atriz agora passa a ser modelo, desfilando num cenário todo seu. Onde ela está não tem ar, portanto passa sem deixar o menor ruído. Está cruzando o céu, chega ao zênite, inclino a luneta ao máximo. Por um instante, tiro os olhos da ocular – quero vê-la a olho nu. É encantadora, brilha mais do que Vênus. 402 quilômetros separam-na da minha cabeça. Ela não me vê, mas não me importo com isso: ela é o ídolo, eu sou o fã, cada um deve ficar em seu lugar. E continua desfilando no céu, vai-se para o sul, seu brilho parece se intensificar mais ainda. Aproxima-se do horizonte, parece que parou, será que virou uma grande estrela, a mais brilhante do céu? Não. Ela está cruzando todas as fronteiras, indo além do horizonte.

Radiografia

Não é fácil falar do nosso amor.
Usarei versos brancos na tarefa,
Já que não quero perder tanto tempo
Tentando montar rimas trabalhosas.

A verdade é que não sei dizer nada
Que exprima por que de ti eu gosto.
E mesmo que tal coisa soubesse eu
Nada faria para compreendê-la.

Afinal o amor nada é na vida.
E se algo for, que tenho haver com isso?
Apenas quero namorar contigo
Porque não sei viver sem namorar.

Não passas duma exigência que faço
Inconscientemente e nada além.
És um sapato necessário ao pé;
Adorno para eu andar na lama.

E para ti adorno também sou
Em meio à falsidade que nos rege
Pois a vida é um gigante teatro
E as peças são escritas pelos bêbados.

Nossos beijos não passam de besteira;
Besteira que convence o olhar alheio.
Sem beijos o casal fica esquisito;
Finjamos ser normais pra convencer.

Falamos em casar-nos no futuro,
Burrice que queremos praticar.
Por isso dá a tua mão à minha
E vamos mergulhar no precipício.

Por outro lado em nada nós pensamos;
Tu vives tua vida e eu a minha.
Somos meros humanos idiotas
Preguiçosos por não querer pensar.

Sem ti a minha vida é bem melhor,
Mas a maldita condição humana
Me faz pensar que é bom estar contigo.
Eis o que somos: asnos de dois pés.

Mas já que tudo em nós é uma mentira
Eu posso demonstrar amor por ti
Fingindo te querer pra me enganar

Fazendo tu o mesmo pra enganar.


Foi o primeiro e o único poema que escrevi na vida. Publicado originalmente no blog Discovery, em 25 de agosto de 2009.

Na sala de aula

Estamos numa escola do início do século XX, ensino tradicionalista, onde, na sala, o professor é onipotente e a hierarquia, rigidamente observada. Um aluno do primário ergue o braço e pergunta:

– Professora, o que é peido?

Naturalmente, lançando fogo pelas ventas, a senhora responde:

– Está suspenso por um mês, seu mal-criado duma figa! – e dá-lhe uma palmatoada que quase arranca-lhe a mão.

Agora estamos no ano 2012. Também numa sala do primário, um guri pergunta:

– Professora, o que é peido?

– Boa pergunta, Cleolenildo! Peido é substantivo masculino derivado do vocábulo latino pedito. O mesmo deu origem ao verbo peidar. Vamos conjugá-lo, classe?

E todos dizem juntos:

– Eu peido, tu peidas, ele peida; nós peidamos, vós peidais, eles peidam.

– Muito bem! – fala a professora, com sua plácida voz. O aluno, ainda curioso, quer saber:

– Mas o que significa a palavra?

– Basicamente é a liberação de gases nada cheirosos pelo orifício por onde as fezes saem. Caso esses gases – que se acumulam no tubo digestivo – estejam sob forte pressurização, uma vez expelidos produzem a vibração das bordas daquele famoso buraco. Algo semelhante acontece quando deixamos escapar o ar duma bexiga, apertando a saída com os dedos.

“O nome técnico do peido é flatulência. Além disso, ele também é conhecido por pum e bufa”.

Os alunos ouvem tudo com inédita atenção, concentradíssimos nas palavras da nobre mestra. Alguns até fazem anotações.

– Muitos conversadores de merda – continua a professora – afirmam ser o peido um sinal, que pode indicar a vinda iminente de grande quantidade de matéria fecal. De fato, devemos cada vez mais aprendermos a interpretar os sinais. Portanto, estejam sempre atentos ao som dos seus próprios peidos, bem como ao fedor. Essa é a melhor forma de prever com precisão quanta bosta iremos expelir e se ela será sólida, pastosa ou líquida.

– Professora, professora! – exclama um aluno a saltar da carteira. – Estou com vontade de soltar um agora mesmo!

– Pois venha até aqui para interagirmos. Que maravilha! Até parece que seus gases ouviram a aula!

O menino vai para a frente de todos e, de costas para os colegas, esforça-se para dar o melhor do seu pum. Com efeito, consegue fazer com que saia bastante forte; mas, para a infelicidade do garoto, vem acompanhado duma explosão de merda, sujando não só suas calças, como também o piso da sala. Todos caem na gargalhada, enquanto a professora lamenta:

– Oh Juninho! Você não soube controlá-lo...

Coerência de bêbado

Deparei-me outro dia com um sujeito sentado à porta dum botequim. Tinha a cara toda ferida e o corpo marcado por escoriações recentes. Apesar disso, não estava mal vestido e sorria deveras. Quando o perguntei o que houve, a resposta foi precisamente essa aí:

– Eu tava lá, em pé na mesa, e o outro caba teimava dizendo que não era muita coisa não: somente quatro copo de cerveja e cinco garrafa de pinga. Eu peguei lá depois o pedaço de pau e fiquei metendo na mesa. Chico não se conformou e disse: “Abaixa o som aí!” Tacaram o dedo no botão, aí ele chegou cum bem muita raiva dizendo que todo mundo era corno. Não me aguentei; rodei-lo o toco de pau na canela e outro chaga tava deitado, com a língua pra fora, a calça rasgada... Mas a gente sabe, né, que todo caba acanaiado termina gostando dum brega véi da porra. “Era um relapso, um relapso!...” Só se ouvia isso depois, pro lado dum pirralho mijando no mêi da rua. Mas eu não sei por que, mas sei ao mesmo tempo, né? A menina vai, vai, vai; se apaixona por um pedaço de pau e fica reclamando depois! Eu sou mêi ignorante, não me acontentei e fui lá apartar a briga. “Vamo pará com isso que eu não sou burro não!!” Mas como água mole em pedra dura tanto fura até que bate, saí de lá e fiquei na parede. Aí ela perguntou: “Cadê?” Eu disse: “Ainda não; espera aí!” Não tem essas rodinha, que o povo chama de sonho, que serve pra comer?... Pronto. É mêrmo assim. Mas o dono gritou pro meu lado: “Solta esse pedaço de pau, fi de ra!...” Eu disse: “Solto nada; vem cá tumá!” Ele vêi, me derrubou da parede e subiu pra mesa. “Não quebra a luz não!!!” Pá! Ficou tudo no escuro. Era mêrmo no dia que a gente ia gravar o CD. Mas ele fez isso porque tinha faltado inegia e ele ficou cum raiva. Quando dá dirrepente a menina leva um choque no secador de cabelo. Ele tava bêbo também e ainda tava cum o pedaço de pau na mão; rodô-lo no secador véi e só se ouviu o pipoco: tudo no escuro, porque tinha faltado inegia, né?! A menina acendeu uma vela, o galego disse: “Tu vai rezar, é?” Mas eu não saía da parede de jeito nenhum! Aí ela disse pra mim: “Manda a menina desligar a televisão, porque tá sem inegia!” Um escuro danado... Acendi o claro do celular; um calor abafurido; mêi dia e um aperto da fébe daquele. Mas só se ouvia Menestrel dizer: “É Gioconda, Gioconda!...” Eu disse: “Vamo pará cum esse papo fudido!” Eu ainda tava cum o toco da pau na mão, metí-lo na mesa... Aí aquele veado falou: “Chico Pé de Macaco!” Eu disse: “Eu não sou Chico Pé de Macaco não! Burro é quem me chama de Chico Pé de Macaco!” De repente o dono chegou numa moto véia, gritando cum toda a boca: “Vamo pará cum esse cabaré!” Subi na mesa; a menina que tava namorando cum o pedaço de pau subiu no balcão... Aí ele ligou o som: um brega da bobônica... O bêbo se levantou do chão e disse: “Quem manda aqui sou eu!” Mái não prestou não... O caba da moto deu-luma cacetada nos pé que ele ficou cum dô de barriga por três dia. “Sái de cima dessa parede e solta esse pedaço de pau!!” Eu disse: “Pronto.” Soutô-lo, pindurô-lo pela manga da camisa véia... Eu disse: “Êpa!” “Não meta o dedo aí não!” Pá! O véi da roupa véia disse: “Eu vou dá-luma dedada! Mái não prestou não... Até hoje esse caba gosta de Elton John. Mas Netrébico ficou ripitindo: roupa nova é melhor!...

Oração de um ateu moderno

Querido Deus, não creio na vossa existência. Queria crer, mas não creio. Não acredito que possa existir um mundo “magicamente” invisível, onde vivem seres espirituais. Isso não quer dizer que repudio a “magia”; quando busco contentamento com transcendentalismo, vou ler Harry Potter! Não acredito que existis, oh poderoso Deus! O mundo e o homem, para mim, não fornecem aquilo que vosso Catecismo chama de “argumentos convergentes e convincentes” que provam a vossa existência.

Querido Satanás, também não creio na vossa existência, o que é óbvio. Se não creio no Todo Poderoso, vosso arquiinimigo, não acredito que possa haver espírito algum. Sois, para mim, pois, tão real quanto Deus, oh poderoso Pai da Mentira! Sobre vós e com vós, não há muito que conversar. Dai-me licença para eu voltar a falar com o Criador.

Bom Deus, acho que está na hora de vós reconhecerdes que não existis ou substituirdes a  por coisa mais convincente. No passado, a humanidade sentia que necessitava da crença num ser superior; hoje, não mais precisamos dessa crença. Quem a adota, age mais por puro dualismo ou cortesia do que por pura sinceridade ou fé. Ademais, cada pessoa é livre para ter vergonha do que quiser, e a objeção de consciência é assegurada pela lei.

Eu queria crê em vós, mas não posso. Como reflete sabiamente Dan Brown na boca de Robert Langdon em Anjos e Demônios, “ter fé requer entrega, aceitação cerebral de milagres, como a Imaculada Conceição e a intervenção divina. E existem ainda os códigos de conduta. A Bíblia, o Corão, as escrituras budistas, em todos há exigências semelhantes. Determinam que se eu não viver de acordo com certo código, irei para o inferno. Não consigo imaginar um deus que governe desta maneira”.

É impossível, poderoso Deus, que eu creia em vós. A razão me fez enveredar por um caminho sem volta. Vivo as virtudes humanas, a moral, ajudo as pessoas necessitadas, sou exemplar cidadão, mas vós sois inexistente para mim. A vossa existência, em verdade, é igual a das sereias. Sois fruto da imaginação humana. E que imaginação! Até atribuíram à vossa intervenção dezenas de livros, escritos no contexto de guerras, revoltas e revoluções sangrentas. O homem é que vos faz diariamente, não fostes vós que fizestes o homem.

Numa dessas aventuras escritas há cerca de 2000 anos, um personagem que chegou a caminhar pelas águas diz que, ao orarmos, o melhor a se fazer é nos trancar em nosso quarto e falar a vós em silêncio. É uma recomendação importante, pois confesso-vos que o que aqui estou falando não diria nem às paredes. Isso porque vivo num país subdesenvolvido. Vós, que tudo sabeis, sois ciente de que é mais fácil ser ateu num país desenvolvido. Se eu expressasse meu ateísmo abertamente entre o meu povo, seria vítima dos mais criativos preconceitos. Chamar-me-iam de endiabrado, teriam medo de mim etc. Mas aprendi com vosso texto sagrado a valorizar os ditames da consciência; sendo assim, guardarei meu ateísmo no fundo do coração.

Aprendi, enfim, a não desperdiçar meu tempo pensando que vós existis. Aprendi que seguir doutrinas religiosas é tão útil quanto enxugar gelo. A religião nada mais é que um tipo de droga, uma tentativa de enganar a razão para que fiquemos uns instantes livres da realidade problemática.

Vosso Catecismo diz ter o homem sede de vós. É verdade: temos sede do infinito. Outro motivo não nos levaria a construir o LHC! Para os que buscam esclarecimentos na realidade irreal, tentam imaginar um Deus. Os cultos religiosos unem indivíduos de interesses afins, mais ou menos como acontece nas comunidades do Orkut. Entretanto, os interesses podem ser semelhantes, mas a imaginação, não. Cada pessoa tem seu próprio Deus. O Deus de um empresário católico, por exemplo, é infinitamente diferente do Deus de um empregado católico. O mesmo acontece em todas as religiões: na mente de cada humano, vós sois o que a história da vida do indivíduo determinar. Em outras palavras, temos pouco mais de 6 bilhões de deuses neste mundo.

A religião, hoje, bom Deus, assemelha-se muito às multinacionais. Todas enfrentam forte concorrência, exigindo cada vez mais serviços de marketing eficientes. Os sermões são propagandas publicitárias, coisa na verdade percebida por qualquer ouvinte que seja capaz de distinguir neles os muitos verbos no imperativo. Além do mais, se vós me permitis dizer isso nesta santa oração, seria bom se os estudantes de publicidade ouvissem atentamente as homilias, pois aprenderiam técnicas de persuasão inimagináveis nas aulas da faculdade. A certeza dos dogmatistas exige a mais alta habilidade de persuadir os outros, afinal de contas, não existe outro meio de “evangelizar”...

Mas eu sou invisível e imaterial à evangelização. A minha certeza está no que é incerto, no que está aberto a contestação. Quanto mais algo se diz ser dogmático, mais estará negando a própria realidade. É como quem jura três vezes antes de falar, a fim de forçar outros a crê nas palavras. O dogmatismo tem suas bases em si mesmo. Se sofre uma vertigem, para não cair no chão segura-se no próprio corpo. Não existe paredes na casa do dogmatismo, nem mobília. Será que conseguirá se manter de pé? Enquanto isso, a ciência, que de fato muda radicalmente a natureza e o homem, está aberta a todo tipo de contestação. Se cambaleia, nunca cairá, pois sua casa tem muitas paredes e mobília onde ela possa se apoiar. A ciência não jura, somente fala e mostra as provas. É a verdade, nada mais.

Pai onipotente, digo-vos que as pessoas precisam descobrir o ceticismo que possuem. Precisam aprender a não acreditar na vossa existência. Ninguém crê numa mesma coisa para sempre. “Quem não tem teto de vidro, que atire a primeira pedra!” Vós mesmo mudais a cada dia na mente dos que dizem crê em vós. Antes, mandáveis para o inferno os que se suicidavam. Hoje, sois bem mais misericordioso. Amanhã, quem sabe até tolerareis o uso de preservativos ou práticas piores. O certo é que vais ficando mais misericordioso com o passar dos dias.

Mas ainda vos chamam de Deus. Ainda rezam a vós. Por isso, também rezei, na certeza de que não me ouvis porque não existis.

Amém.

Conversa no restaurante

ADVERTÊNCIA: Nosso mundo é muito sério. O povo é culto, exigente no que lê e erudito nas ações. A mídia formadora de opinião é muito séria, as revistas principalmente. Vivemos cercados de homens honrados, austeros, sérios. Sobretudo nas manifestações artísticas tem-se uma rigidez técnica de causar inveja ao Barroco. É em homenagem a essa seriedade que o texto seguinte foi escrito.


À pomposa mesa do que muitos consideram o mais requintado restaurante de Brasília, entre as outras mesas dispostas sobre macio carpete escarlate, encontra-se um senhor sentado em companhia de outro sujeito mais novo. Trata-se dum deputado e o seu secretário, respectivamente. O silêncio da refeição é quebrado por curioso barulho partido de baixo da cadeira do legislador. 


– Vossa Excelência peidou? – pergunta o secretário, meio espantado.

– Foi nada mais que um peido relâmpago – responde o doutor.

– Isso me faz recordar um opúsculo que li outro dia, sobre a grande variedade de peidos existente.

– Quem é o autor?

– Agora não lembro. Só sei que a obra entitulava-se...

– Peidologia.

– Exatamente! O senhor também a leu?

– Devorei-a. Precisamos enriquecer nossa literatura com obras-primas do tipo.

– É pena estarmos carentes de escritores e leitores que valorizem tão precioso assunto.

– Lamento esse fato. Porém, dada a existência de sexólogos, o que impede o surgimento de peidólogos ou até merdólogos?

– Realmente Vossa Excelência sabe o que diz. Aprecio tamanha sabedoria!

Continuam comendo. A sinfonia dos talheres convida o apetite a atuar. Em geral as cores fortes dos restaurantes parecem agudar o paladar, tornando os temperos mais visíveis à língua. Concluída a refeição, o legislador arrota pelo nariz e comenta:

– Já pensou se tivesse saído por baixo outra vez!

Rindo mais com os ombros do que com a boca, o secretário diz:

– O senhor chamou aquele peido de relâmpago, e o classificou bem; não obstante, Peidologia aborda muitos outros tipos de flatulência.

– Como Rasga-bucha, por exemplo; o som é semelhante ao de uma cortina sendo rasgada.

– Há também o Chuveirinho, comum nas caganeiras. Soltamo-lo acompanhado dum esguicho de bosta líquida, que em seguida é expelida em jato. Em outras palavras: se gagássemos com a bunda virada para cima, teríamos um repuxo de merda!

– Em contrapartida, há os silenciosos, como o Apaga-vela. Só é expelido o gás. Acho que, se alguém tentasse, conseguiria mesmo apagar uma vela assim.

– Gostei bastante do Passo-a-passo. É o tipo de peido dos caminhantes e talvez o mais compassado de todos; a cada passo tem-se um pum: pum, pum, pum, pum...

– Já que você falou em termos musicais, lembrei-me do Ascendente e do Descendente. O primeiro começa agudo e termina grave; no segundo ocorre o contrário.

– É demais! Todavia, nenhum se compara ao Apito-gaiato. Este sai igualzinho a um silvo – o nome bem o define. Geralmente escapa quando estamos acocorados.

– Penso que nenhum é tão barulhento feito o Girândola. Não é necessário nem descrevê-lo...

– Engana-se, meu caro. Aposto que o Fura-calça é o mais barulhento de todos. Um amigo meu, após soltar um desses, foi parar no hospital.

– Em verdade, não devemos brincar com essas coisas tão sérias! Mas me revolto por os avaros terem sido homenageados com um tipo de peido: o chamado Unha-de-fome. Este sai tão tacanho que, ao ouvi-lo, dá-nos vontade de dizer ao soltador: “Peide com fé, rapaz!”

– Agradei-me também daquele chamado 3 Segundos. Seu nome deve-se exclusivamente à sua duração, que, para um peido, não é nada pequena.

– O grande autor do opúsculo fala ainda do Intrometido: sai quando menos o desejamos; pode até ser nosso traidor.

Neste momento, o garçom chega para dar a conta. Os dois clientes efetuam o pagamento e agradecem. Desconfiado, o parlamentar diz ao companheiro:

– Vamos embora porque eu acabei de detonar uma Bomba-de-gás!

O almoço

Nesta época do ano, na latitude onde vivo, os raios solares caem com tanta força que quase chegam a perfurar o chão. Há dias onde o calor dentro de casa torna-se insuportável, principalmente na hora do almoço. Isso me faz preferir almoçar, às vezes, numa mesa situada no quintal. Sentado em suas cadeiras, podemos pôr os pés descalços sobre um piso de terra, abaixo duma boa sombra, com bastante vento soprando.

Outro dia, eu almoçava tranquilamente nesse confortável local. Meu primo, Henrique, encontrava-se do meu lado, a falar de futebol. Foi quando ele avistou um bicho no chão e me perguntou:

– Que bicho é esse, André?

Olhei e respondi:

– É uma lesma.

O animal, de tamanho bem maior que o ordinário, caminhava lentamente (não podia ser rápido mesmo!) ao pé do muro. Seus olhos pulados pareciam procurar algo.

Meu primo é perito em matar preás, gabirus, calangos, lagartixas. Curioso por conhecer a resistência do pequeno molusco gastrópode, Henrique lançou mão duma espátula. Tentou colocar nela a lesma, mas esta, tendo corpo muito frágil, sofreu um ferimento grave.

Como o bicho já estava inválido, meu primo resolveu espatifá-lo ainda mais. Imagine, caro leitor, uma lesma espatifada! Tal imaginação provoca certa turbulência se você estiver fazendo alguma refeição. Mas eu, em pleno almoço, ouvi Henrique dizer:

– Olha André! Está saindo dela uma coisa amarelada!

De fato, o gastrópode expelia certa substância pastosa, de cor amarelo-catarro. Olhei a nojenta cena com a boca cheia de macarrão. Não sei o que no momento me fez sentir ter entre os meus dentes o corpo mastigado da pobre lesma. Senti o gosto doce daquela massa corpórea espalhada ao pé da mesa. Era como se eu estivesse engolindo catarro de outra pessoa.

Se você não conseguiu vomitar, leia mais uma vez.

A falsificação da liturgia

Publicado por André Hilton originalmente no Blog Discovery, em 28 de maio de 2009.

A eucaristia é “fonte e ápice de toda a vida cristã” (Lumen Gentium, 11). “Os demais sacramentos, assim como todos os mistérios eclesiásticos e tarefas apostólicas, se ligam à sagrada Eucaristia e a ela se ordenam. Pois a santíssima Eucaristia contém todo o bem espiritual da Igreja, a saber, o próprio Cristo, nossa Páscoa” (Presbiterorum Ordinis, 5). Deve-se, de fato, se respeitar da forma mais elevada possível a celebração eucarística, ou seja, a santa missa. Para isso, a Mãe Igreja, desde os seus primórdios, estabeleceu o que chamamos de livros litúrgicos: eles contêm todas as regras, prescrições e instruções, que devem ser estritamente respeitadas no momento da celebração. Como exemplo dessas obras, podemos citar o Missal Romano, as instruções Liturgicae InstaurationesVarietates Legitimae, a Constituição Sacrossanctum Concilium, o próprio Código de Direito Canônico, entre dezenas de outros documentos. Sob a responsabilidade da Sagrada Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, a Igreja, juntamente com os bispos diocesanos, regulamenta a liturgia. Logo, compete à Sé apostólica ordenar a sagrada liturgia da Igreja universal, publicar os livros litúrgicos e autorizar suas versões nas línguas correntes, assim como vigiar para que os ordenamentos litúrgicos , especialmente aqueles através dos quais é regulamentada a celebração do Santíssimo Sacrifício da Missa, sejam observados fielmente em todos os lugares do mundo.

Mas nem sempre as prescrições estabelecidas pela Igreja são cumpridas na Igreja. Em muitas localidades, as regras da Instrução Geral do Missal Romano (IGMR) e de outros documentos são tão desobedecidas que João Paulo II, em 2004, ordenou que a Sagrada Congregação supracitada preparasse, de acordo com a Congregação para a Doutrina da Fé, a Instrução Redemptionis Sacramentum (RS), sobre alguns aspectos que se deve observar e evitar acerca da Santíssima Eucaristia. Confrontando as normas contidas nesta Instrução e no Missal com a forma de se celebrar missa em grande parte do Brasil e da América Latina, vemos a falta de preocupação por parte dos padres em seguir as prescrições estabelecidas nos livros litúrgicos. Há muitas desobediências às regras. Isso nos faz pensar que os próprios presbíteros nunca leram os documentos da Igreja, ou leram uma única vez, em aulas no seminário.

A seguir, exponho as principais violações feitas por padres brasileiros durante a celebração de suas missas. Faço isso porque “todos os fiéis, por sua vez, gozam do direito de ter uma liturgia verdadeira e, de modo particular, uma celebração da santa missa que seja assim como a Igreja quis e estabeleceu, como prescrito nos livros litúrgicos e em outras leis e normas" (cf. RS, n. 12).

“A liturgia da palavra deve ser celebrada de modo a favorecer a meditação. Deve, por isso, evitar-se completamente qualquer forma de pressa que impeça o recolhimento” (cf. IGMR, n. 56). Mas há muitos maus leitores, que gaguejam, leem rápido demais ou lento demais, sendo, não raro, impossível de se entender as palavras sem acompanhá-las em jornal ou livrete contendo o texto das leituras do dia. “Para desempenhar bem a sua função, é necessário que o salmista seja competente na arte de salmodiar e dotado de pronúncia correta e dicção perfeita” (cf. IGMR, n. 102), o que dificilmente acontece em nossas igrejas. Salmos e outros cantos geralmente não são ensaiados pelos cantores, ficando tudo na base do improviso. Alguns salmistas cantam em um tom e o instrumento acompanha em outro. Santo Agostinho diz que quem canta reza duas vezes. Logo, quem canta mal, reza mal. Se não se ensaiou antes, não se cante durante a missa! A celebração tem de ser bem preparada (cf. RS, n. 58). Coloque-se pessoas com boa voz para cantar e ler.

“Na missa diz-se sempre uma só Coleta” (cf. IGMR, n.54), mas várias vezes vemos o presidente dizer duas: uma da missa do dia e, em seguida, outra própria. É uma desobediência à regra, também, o celebrante, usando estola verde, ler uma Coleta, Sobre as Oferendas e Depois da Comunhão próprias duma celebração onde se faz memória da Virgem Maria, sendo a missa uma celebração ferial do tempo comum.

O sacerdote “pode introduzir os fiéis, com brevíssimas palavras: na missa do dia, após a saudação inicial e antes do rito penitencial; na liturgia da palavra, antes das leituras; na Oração eucarística, antes do Prefácio, mas nunca dentro da própria Oração” (cf. IGMR, n. 31). Contudo, há padres que enchem a Oração eucarística de “parênteses”, até mesmo durante a narração da instituição. Mandam que o povo, com ele, diga palavras arbitrárias. Tais abusos sempre se repetem nas celebrações solenes, pois, não conformado com o disposto nos livros normativos para os dias de solenidades, o padre só se aquieta quando enche a missa de música, apresentações de danças, colorido, blá, blá, blá, enfim, dezenas de “acrescentos ornamentais” que, devido ao exagero, encobrem a vivência do Mistério. Diz a Igreja aos presbíteros: “Não esvaziem o significado profundo do próprio mistério, deformando a celebração litúrgica com mudanças, reduções ou acréscimos arbitrários” (cf. RS, n. 31).

“Dê-se um fim ao reprovável uso mediante o qual os sacerdotes, os diáconos e também os fiéis mudam e alteram por conta própria, aqui e ali, os textos da sagrada liturgia por eles pronunciados. De fato, assim fazendo, tornam instável a celebração da sagrada liturgia e com frequência acabam alterando o seu sentido autêntico” (cf. RS, n.59). Jamais podemos pronunciar, durante a missa, as palavras que competem ao presidente, como, por exemplo, a oração da paz, a doxologia.

“Enquanto o sacerdote celebrante recita a oração eucarística, não se sobreponham outras orações ou cantos, e o órgão ou outros instrumentos musicais fiquem em silêncio, exceto nas aclamações do povo devidamente aprovadas” (cf. RS, n. 53). Porém, é comum presenciarmos fundo musical no momento da consagração.

“O Glória é um antiquíssimo e venerável hino com que a Igreja, congregada no Espírito Santo, glorifica e suplica a Deus e ao Cordeiro. Não é permitido substituir o texto deste hino por outro” (cf. IGMR, n. 53). Entretanto, é costume se recitar “glórias” pobres em nossas missas, compostos por certos cantores, em ritmo de samba, pop, sertanejo etc. Em dias festivos, também, muitas vezes o presidente resolve cantar o credo com outra letra, que exclui a maioria dos pontos dos 12 dogmas.

João Paulo II disse que não é só com a letra que devemos nos preocupar em uma música sacra, mas também com a melodia. “É direito da comunidade dos fiéis que haja regularmente, sobretudo na celebração dominical, uma adequada e idônea música sacra” (cf. RS, n. 57). Esta não deve ser entendida como as obras clássicas e Mozart, Bach, Handel, por exemplo, mas sim como música apropriada para a liturgia. Em nossas missas, estamos carentes de composições melódicas adequadas à liturgia. Hoje existem muitos cantores de música católica; gravam CD’s nos mais diversos ritmos populares... De alguma forma, suas obras vão parar dentro das igrejas, sem que haja preocupação com a qualidade das músicas para o contexto celebrativo. O que vale é o sucesso presente. Aos poucos, as pessoas vão se acostumando com uma “missa pop” e a celebração vai perdendo a sua seriedade. Devemos ter em mente que a liturgia não é um teatro, nem um show e muito menos uma apresentação. A liturgia é a vivência de um mistério.

Quando se fala em forró, pop, rock' n' roll, todos nos lembramos de alguma banda, pois bem conhecemos os ritmos de cada gênero musical e admiramos cantores e cantoras – principalmente os leigos. E o que dá o ritmo forte à música é a bateria. É impossível não trazer para dentro de si as influências de músicas mundanas quando há a presença de bateria numa missa. Esse instrumento não corresponde às exigências da música sacra; não se adapta ao meio; só serve para fazer com que os fiéis não se concentrem no mistério vivenciado, assistindo à celebração como quem assiste a um show. A mesma inadaptação vale para guitarra com pedal: o som é lindo, mas completamente inadequado para missa. Existem algumas versões musicais para a Ladainha de Todos os Santos com um ritmo balançado como o axé. Será que é dessa forma que devemos nos recolher interiormente?

“Também se deve guardar, nos momentos próprios, o silêncio sagrado, como parte da celebração” (cf. IGMR, n.45). No entanto, isso dificilmente acontece. Acho que só há silêncio quando o padre cochila! É um desafio conversar com Deus depois da comunhão dentro de grande parte das igrejas e principalmente em missas campais. Eis o que devemos fazer no momento da comunhão: a ação de graças. É o tempo (os 10 minutos de silêncio total) mais precioso do cristão. Muita gente comunga e não muda de vida porque comunga mal. Ninguém é digno de comungar; mas Jesus quer que nós comunguemos e, por isso, é necessário uma disposição nossa. Então, comunguemos com devoção, por amor. Contudo, há momentos em que a concentração nesse instante é quase impossível. E o pior é o fato de esses momentos serem rotina nas igrejas brasileiras. Às vezes, ajoelhado, com os olhos fechados, durante minha ação de graças, grito em meu interior: “Ministério de música, após a comunhão de todas as pessoas PARE DE CANTAR PELO AMOR DE DEUS, pois eu preciso contar a Jesus os meus problemas!” Alguns santos permaneciam por mais de 2 horas em ação de graças. Vejo, pois, que não se fazem mais santos como antigamente!

“Antes da própria celebração é louvável observar o silêncio na igreja, na sacristia e nos lugares que lhes ficam mais próximos, para que todos se preparem para celebrar devota e dignamente os ritos sagrados” (cf. IGMR, n. 45). Porém, os bastidores de muitas celebrações lembram os bastidores de um show dos Rolling Stones. Dentro da igreja, as pessoas conversam como se estivessem em uma feira e tratam dos assuntos mais variados.

“Não é permitido omitir ou substituir por iniciativa própria as leituras bíblicas (...) por outros textos não-bíblicos” (cf. RS, n.62). Mas bem sabemos que rola pelo Brasil afora textos versificados e com rima, retratando passagens do Evangelho. Alguns vão parar no ambão, não penetrando a mente dos fiéis no grande mistério.

“A leitura do Evangelho, que constitui o ápice da liturgia da palavra, é reservada, segundo a tradição da Igreja, na celebração da sagrada liturgia, ao ministro ordenado" (cf. RS, n. 63). Sendo assim, é equivocado o costume no qual as palavras dos personagens do Evangelho do dia são pronunciadas por leigos ou crianças, enquanto o padre, às vezes sim, outras não, pronuncia apenas as falas de Cristo.

Por que é só o bispo, o sacerdote ou o diácono que leem o Evangelho? Porque, naquele momento, eles estão representando Jesus (in persona Christi); ou melhor: naquele momento, é o próprio Cristo que, do ambão, pronuncia as palavras, e apenas os ministros ordenados têm esse “poder”.

Exceto em celebrações especiais, “normalmente a ordem das intenções [na Oração Universal] é a seguinte: a) pelas necessidades da Igreja; b) pelas autoridades civis e pela salvação do mundo; c) por aqueles que sofrem dificuldades; d) pela comunidade local” (cf. IGMR, n.70). Mas essa ordem nunca é seguida e, na maior parte das missas, essas intenções não são observadas no texto da prece.

“É de máxima importância que a celebração da missa ou Ceia do Senhor de tal modo se ordene que ministros sagrados e fiéis, participando nela cada qual segundo a sua condição, dela colham os mais abundantes frutos” (cf. IGMR, n.17). Será que colhemos abundantes frutos ao sairmos duma igreja, após ouvirmos as palavras “ide em paz e que o Senhor vos acompanhe.”?

“A recitação da oração eucarística, por sua própria natureza, é o ápice de toda a celebração” (cf. RS, n. 52). Contudo, alguns sacerdotes a recitam tão rápido que lembram um narrador de futebol em rádio, no momento em que a bola está na grande área. A importância das palavras fica sem ser demonstrada. Somente na consagração a velocidade da leitura é aliviada; o prefácio, os mementos, a oração da paz são lidos como se fosse para terminar logo a missa. Às vezes isso é feito porque a homilia durou mais de meia hora; mas a homilia não é o ápice da celebração.

“A missa celebra-se em língua latina ou em outra língua, desde que se recorrem a textos litúrgicos aprovados segundo a norma do direito” (cf. RS, n.112). Caro leitor, você já ouviu falar alguma vez a respeito duma língua chamada latim? Ela existe!...

“Cabe ao sacerdote celebrante, eventualmente auxiliado por outros sacerdotes ou pelos diáconos, distribuir a comunhão” (cf. RS, n. 88). “É reprovável a praxe dos sacerdotes que, embora presentes à celebração, não distribuem a comunhão e encarregam os leigos para essa função” (cf. RS, n. 157). Mas, em praticamente todo o território brasileiro, vemos o padre permanecer sentado enquanto ministros [que deveriam ser extraordinários] distribuem as hóstias. O Código de Direito Canônico diz que “somente o sacerdote validamente ordenado é o ministro que, fazendo as vezes de Cristo, é capaz de realizar o sacramento da Eucaristia” (cf. cân. 900, §1). “Por isso, o nome de ‘ministro da Eucaristia’ cabe propriamente ao sacerdote” (cf. RS, n. 154). Entretanto, há tempo que virou hábito chamar de “ministro da Eucaristia” meros leigos que, sempre contrariando o disposto nos Documentos, distribuem a santa comunhão em missas com a presença de poucos fiéis. A pessoa, só porque recebeu algumas explicações superficiais e o padre autorizou, diz: “Eu sou ministro da Eucaristia!” É costume, durante a celebração, eles se sentarem ao lado da sede do sacerdote, na cadeira do diácono, talvez apenas porque usam uma curta bata branca, que é da mesma cor da alva.

Ministro da Eucaristia é o padre. É ele que diz, in persona Christi: “Isto é o meu Corpo... Fazei isto em memória de mim...” Por isso, é o presbítero quem deve distribuir a comunhão.

Ministro Extraordinário da Comunhão Eucarística é o leigo idôneo, porque este não consagra o Pão e o Vinho e, sim, apenas ajuda a distribuí-los caso o padre sozinho não dê conta; se realmente for necessário; se não tiver outro jeito; se, na missa, estiver presente uma quantidade de fiéis anormalmente grande, uma verdadeira multidão (cf. RS, n. 158). Não pode virar rotina a distribuição do Corpo de Cristo feita por meros leigos. A abreviação desse termo (“ministro da Eucaristia”) acaba originando uma expressão que se aplica de maneira errônea. “Esse ofício deve ser entendido no sentido estrito conforme a sua denominação de ministro extraordinário da santa comunhão, e não como ‘ministro especial da santa comunhão’ ou ‘ministro extraordinário da Eucaristia’ ou ‘ministro especial da Eucaristia’, definições que amplificam indevida e impropriamente seu alcance” (cf. RS, n. 156).

“Se, em geral, ministros sagrados suficientes estão presentes para a distribuição da santa comunhão, os ministros extraordinários da santa comunhão não podem ser delegados para essa tarefa. Em tais circunstâncias, aqueles que foram delegados para esse ministério, não o exerçam” (cf. RS, n. 157). Portanto, ministros extraordinários da comunhão eucarística, por favor, façam isso: se o padre tiver condições de distribuir sozinho a comunhão por conta do baixo número de fiéis presentes, digam-lhe: “Eu não vou ajudar a distribuir as hóstias!” O sacerdote, a menos que seja muito velho e/ou esteja cansadíssimo, não pode ficar sentado enquanto a comunhão é distribuída.

“Somente em caso de verdadeira necessidade se deverá recorrer à ajuda dos ministros extraordinários na celebração litúrgica. De fato, isso não está previsto para assegurar uma participação mais plena dos leigos, mas é por sua natureza supletivo e provisório (cf. RS, n. 151). Não tem problema algum que a celebração demore um pouco mais porque o padre está sozinho a distribuir as hóstias.

“Não é permitido que os próprios fiéis tomem, por si mesmos, o pão consagrado nem o cálice sagrado, e menos ainda que o passem ente si, de mão em mão” (cf. IGMR, n. 160). Isso diz a rubrica, mas, como se ela não existisse, em alguns lugares do nosso país (onde será?) a vontade de uma única pessoa é maior que a do Vaticano, e o cálice é bebido pelos fiéis como se fosse um copo d’água. Desobedecer a mencionada norma do Missal Romano, segundo a Redemptionis Sacramentum, constitui um ato objetivamente grave (cf. RS, nn. 173 e 94). O bispo pode permanecer indiferente a isso, mas nada está oculto aos olhos de Deus (favor dar uma risada bem forte neste ponto).

"Mantenha-se o uso do rito romano de dar paz antes da santa comunhão, como estabelecido no rito da missa" (cf. RS, n. 71). Com efeito, para que mudar arbitrariamente o desenrolar da celebração? Isso não leva a nada! Na Igreja do Brasil, parece até que essa prescrição citada não existe, pois muitas vezes sequer a paz é dada.

"Convém que cada um dê a paz àqueles que lhe estão mais próximos, de modo sóbrio. O sacerdote pode dar a paz aos ministros, permanecendo, porém, sempre no presbitério" (cf. RS, n. 72). Mas, nas nossas missas, o momento da paz parece uma festa. Alguns abraçam os outros de modo tão forte que os levantam do chão. As pessoas se espalham tanto que o instante lembra a chegada duma procissão na igreja. O sacerdote, descendo do presbitério, às vezes anda por toda a nave, enquanto um pesado canto é entoado. De repente, surgido do nada, vem o Agnus Dei.

Na conclusão da missa, devem ser dadas "notícias breves, se forem necessárias" (cf. IGMR, n. 90. RS, n. 74). Entretanto, na maioria das celebrações vistas nas paróquias brasileiras, os avisos, às vezes, duram bem mais que a própria homilia, pois vêm com cantos e mais cantos e apresentações com danças... Tudo antes da Bênção Final.

Na procissão de entrada, antes do início da missa, "o leitor pode levar o Evangeliário um pouco elevado, não, porém, o Lecionário" (cf. IGMR, n. 120). Contudo, já cansamos de ver este último livro ser reverenciado como se fosse o Evangeliário. E também já estamos fartos de presenciar o único livro simbólico da liturgia sendo carregado por um leigo ou ministrante durante a celebração, enquanto o padre e o diácono caminham em direção ao altar com as mãos vazias.

"Os vasos sagrados, destinados a acolher o Corpo e o Sangue do Senhor, sejam rigorosamente moldados segundo a tradição e os livros litúrgicos" (cf. RS, n. 117); "devem ser fabricados de metal nobre. Se forem fabricados de metal oxidável, ou menos nobre que o ouro, normalmente devem ser dourados por dentro" (cf. IGMR, n. 328). Os cálices, as píxides, as patenas e as âmbolas das igrejas ou capelas da sua paróquia obedecem a essas determinações? Lembre-se de que quem está dentro deles é ninguém menos que o Rei do universo.Descumprir a mencionada citação da Redemptionis Sacramentum constitui um abuso objetivamente grave (cf. RS, n.173).

"Tanto na formação dos artistas como na escolha das obras de arte a admitir na igreja, deve procurar-se o valor artístico, que alimente a fé e a piedade e que, por outro lado, corresponda à verdade do seu significado e aos fins a que se destina" (cf. IGMR, n. 289). Isso diz a norma, porém, nossas igrejas estão repletas de imagens "baratas", fabricadas por métodos industriais, todas moldadas em fôrmas. Quando próximo a alguma dessas imagens chegamos, imediatamente percebemos a pobreza artística e notamos o processo industrial nos detalhes do ícone. Imagens desse tipo revelam, sim, uma falsificação da autêntica arte sacra. Clero e leigos esqueceram o valor e nobreza de peças esculpidas pelas mãos de um artista.

"Sobre a mesa do altar, apenas se podem colocar as coisas necessárias para a celebração da missa" (cf. IGMR, n. 306). Só que já estamos cansados de ver, durante celebrações, coroinhas, ministrantes e até o padre porem sobre a santa mesa objetos que poderiam ser colocados noutro lugar, como caixas de fósforo, papéis, livretes, canetas, presentes embrulhados, bolsas, sacolas, copos e o que o leitor imaginar.

"A ornamentação com flores deve ser sempre sóbria e, em vez de as pôr sobre a mesa do altar, disponham-se junto dele" (cf. IGMR, n. 305). Mas é normal, em muitas igrejas ou capelas, ser colocado um jarro com belas flores sobre a toalha branca da mesa do altar.

"No tempo da Quaresma não é permitido adornar o altar com flores" (cf. IGMR, n. 305). Em muitos lugares isso é completamente esquecido. Não raro vemos, nas semanas da Quaresma, o altar repleto de flores, assim como encontra-se no tempo comum ou no tempo pascal.

"A dignidade do ambão exige que só o ministro da palavra suba até ele" (cf. IGMR, n. 309). Então, é de se ver que o nosso povo não reconhece a dignidade da mesa da palavra nem a respeita, pois, antes do final da missa, é comum pessoas subirem ao ambão para dar avisos ou tagarelar algo.

"Atenda-se a que os fiéis não somente possam ver quer o sacerdote quer o diácono e os leitores, mas também consigam ouvi-los comodamente, recorrendo aos meios da técnica moderna" (cf. IGMR, n. 311). No interior d’algumas igrejas, por exemplo, o som dos alto falantes é fraco e reverbera muito. Às vezes fica complicado ouvir bem a homilia, porque, nesse momento, não estamos acompanhando as palavras pelo jornalzinho. Em outras igrejas é comum vermos microfones com defeito e nos assustarmos repentinamente com fortes apitos, fruto de microfonia. Em geral, pouquíssimas pessoas sabem mexer no sistema de som (e muito mal).

"Nas celebrações litúrgicas, cada qual, ministro ou fiel, ao desempenhar sua função, faça tudo e só aquilo que pela natureza da coisa ou pelas normas litúrgicas lhe compete" (cf. Cat. § 1144). Mas é normal ver-se leitores que, saindo do ambão, vão para o ministério de música ou vice-versa, entre muitas outras formas de desobediência às mencionadas palavras do Catecismo.

"Há de procurar-se de modo particular que os livros litúrgicos (...) sejam verdadeiramente dignos, de boa qualidade e belos" (cf. IGMR, n. 349). Mas é comum se ver em várias igrejas lecionários, Missais e Evangeliários velhos e rasgados; alguns até desatualizados. Nos dias feriais, em poucas igrejas do nosso país os fiéis assistem a uma missa com lecionário sobre o ambão – acho que os sábios leitores não o saberiam usar! Para fazer a primeira leitura e o salmo responsorial, o leitor usa a "Liturgia Diária" da Paulus, um livrinho miúdo, bem conhecido por todos nós.

"Antes de vestir a alva, põe-se o amicto, caso ela não cubra completamente as vestes comuns que circundam o pescoço" (cf. RS, n. 122). Faça de conta que este número da Instrução publicada em 2004 não existe!

Quando o presidente duma celebração comete imprudências, a liturgia está sendo falsificada, o que constitui um risco tremendo (cf. RS, n. 169). "Demasiado grande é o mistério da Eucaristia para que alguém possa permitir-se tratá-lo a seu livre-arbítrio, não respeitando seu caráter sagrado nem sua dimensão universal" (cf. RS, n.11). Todos esses abusos contribuem para que as pessoas vejam a celebração eucarística como um mero teatro e, a Igreja, como um clube.

As normas litúrgicas deixam certa liberdade, mas nunca, em hipótese alguma, devemos exagerar e cair na libertinagem. Hoje há um relativismo tremendo até mesmo na cabeça dos padres quando acham que é lícito desobedecer a prescrições dos documentos da Igreja.

Muitas coisas são obedecidas, como a escolha da missa, o calendário geral de leituras, as cores litúrgicas, a escolha da Oração Eucarística. Isso se deve ao fato de subsistir no povo brasileiro uma persistência primordial naquilo que é estético, concreto, físico, material, enquanto inexiste uma preocupação com o verdadeiro sentido do que há por trás dos gestos e aparência visível das coisas. Muitas rubricas são obedecidas, e outras, expostas nos mesmos livros, são completamente desobedecidas: isso prova que a não observância e violações das santas prescrições da Igreja éintencional.

Quando a liturgia é celebrada de forma equivocada, o povo se escandaliza, e devemos reconhecer que existe muita gente de fé fraca. Pessoas instruídas, por exemplo, jamais levarão a sério uma missa onde se vê muita "bagunça". Alguém culto, mesmo que não leia os documentos da Igreja, claramente percebe quando, nos ritos litúrgicos, alguma norma é desobedecia. E cada detalhe de todo o ato litúrgico é extremamente significativo.

Às vezes o sacerdote desconhece as exigências do Missal Romano. Mas todos nós, fiéis, temos odireito de participar de uma missa celebrada da maneira correta, como manda a Santa Mãe Igreja.

Parece que recebemos os documentos da Igreja, colocamos na gaveta, não lemos e não ensinamos nada sobre eles e fica por isso mesmo. Isso se chama falta de zelo para com as coisas de Deus.

Quando obedecemos aos documentos, mais que movidos por obrigação, obedecemos-lhos por alegria e agradecendo a Deus por Ele ter nos dado esses ensinamentos (e regras) para seguirmos. Alguns padres fazem como Luiz XIV: “L’ Êtat c’ est moi”. Os sacerdotes que são meio rebeldes perante as coisas da Igreja dizem, implicitamente, isso.

É na celebração eucarística que o sacerdócio cumpre seu principal ministério – nos diz a Igreja. Então, se o padre não segue estritamente as determinações do Missal, está sendo um mau sacerdote.

Amigo leitor e fiel das nossas missas, se você notar qualquer abuso que se repete na celebração eucarística, como equívocos no desenrolar da missa ou descumprições de regras do Missal Romano, todo o católico tem o direito de manifestar sua indignação ao padre ou principalmente ao bispo(cf. RS, n. 184). Não tenha medo ou receio de fazer isso. Contudo, manifeste com amor e por amor, de forma prudente e culta. O que você não puder fazer por amor, não faça de outro jeito. Lembre-se que o significado litúrgico dos gestos e ritos nas nossas missas está sendo comprometido por muitos padres, e o católico instruído precisa, por amor a Cristo e à Igreja, fazer alguma coisa para mudar a situação. Entristeço-me bastante quando presencio equívocos em missas, todos decorrentes da falta de respeito que muitos têm para com as normas do Missal. Conhecendo tais normas, é impossível não se entristecer perante violações involuntárias ou intencionais.

Peço, pelo amor de Deus, que o visitante deste blog leia a Redemptionis Sacramentum e confronte as afirmações desse documento com a vida litúrgica da sua comunidade. Repare, principalmente, se a santa missa está sendo celebrada da forma como a mencionada Instrução aponta. Temos que confrontar o que se faz nas nossas paróquias com os textos eclesiais vindos da Santa Sé, assim como temos que confrontar o Catecismo com as doutrinas e ideologias do mundo.

A única forma de acabar com tais abusos é formação bíblica e litúrgica para o povo (cf. RS, n. 170). Entretanto, nossa gente, acomodada, tem medo dos nomes difíceis, mal sabe ler um livro e é carente de informações. O que fazer? Paciência...

Que tudo o que está exposto neste artigo seja para a glória de Deus e sirva de alerta para o clero e leigos.