sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A destruição de uma cidade

Publicado por André Hilton originariamente no blog Discovery, em 23 de junho de 2010

As águas não baixam

Certo dia, eu disse que desejaria estar vivo para ver o fim do mundo, e o que nesta semana vi corresponde a um Apocalipse a nível regional. Não foi o fim da humanidade, do planeta, da natureza. Foi o fim duma cidade. Talvez fim seja uma palavra, além de curta, não muito precisa. O que presenciei foi uma destruição, um ensaio para o fim. O que é destruído, pode ser reerguido, mas o fim não tem remédio; portanto, adotemos de vez o termo destruição.

No blog Atlantis, relato o início da catástrofe, os primeiros episódios do que se tornaria um marco na história do pobre município palmarense. Tudo começou na tarde do dia 18 de junho, sexta-feira. As águas do rio Una invadiam as ruas do centro da cidade. Pouco depois escrevi O Una mostra mais uma vez do que é capaz. Chegada a noite, já se podia dizer que a maior cheia da história estava assolando a cidade. Pelas 22h00, nós do Santa Rosa começamos a nos preocupar, pois a água invadia a Rua Deputado Alcides Teixeira com uma intensidade bem maior que a sucedida na enchente de 2000. Às 23h00, fui olhar o Una na esquina da Avenida José Américo de Miranda – que já estava inteiramente submersa –, na entrada da cidade. Ninguém dormia, as ruas estavam cheias de gente, todo mundo apreensivo, assustado, admirado, surpreendido, era o que os olhares diziam. Voltei para casa às pressas, tive notícia de que a água começava a chegar à minha rua de maneira preocupante. Enquanto andava, os postes se apagaram, a eletricidade se foi, o escuro veio, tomando conta das ruas. Avistei flashs azulados no céu, como relâmpagos, mas eram os transformadores entrando em curto.

Mariana e principalmente Claudivã, seu namorado, entraram em pânico com a subida da água e nos forçaram a corrermos todos para outro local, abandonando a casa. Foi o que fizemos. Lanternas e faróis de carros iluminavam precariamente as ruas escuras. Caminhávamos nas trevas e sabíamos que estávamos no inferno. Primeiro, ficamos na casa da mãe de Cícero e, depois, na de Suelângela, onde passamos a noite até o dia amanhecer. Micke, meu cachorro, esteve o tempo inteiro conosco.

Noite sem fim

No começo da madrugada do dia 19, a água surpreende a expectativa de todos os moradores do bairro Santa Rosa e inunda metade da Rua Laboratorista Manoel Leite (e muitas outras) no trecho onde moramos, chegando à nossa residência muito felizmente com pouca intensidade, alcançando não mais que 15 centímetros de altura dentro de casa. Esta, com a igreja à frente, estava na extremidade do alcance da inundação, que se estendia daí para a esquina sul, onde a água atingiu profundidade bem maior.

A noite inteira foi passada à luz de velas e lanternas. Meu pai, o pai de Suelângela e eu erguemos para cima de mesas, cadeiras e camas a maior parte da mobília de casa, pouco antes de a água invadir os cômodos.

A única rádio que funcionava era a Cidade FM (frequência 87,9). A Quilombo (que foi destruída na catástrofe) e a Cultura estavam fora do ar. O assunto conversado pelo locutor era a cobertura da enchente, na qual as únicas informações de fato importantes eram a subida constante da água e, mais tarde, sua descida constante, iniciada por volta das 03h00.

Ainda na noite de sexta-feira, as duas pontes da BR 101, em processo de duplicação, vieram abaixo, como cartas de baralho, por conta da força da correnteza. Uma dessas pontes havia sido construída há menos de um ano e, a outra, fora totalmente reformada. Nessa noite sem fim, não preguei os olhos um segundo sequer. Ficamos todos em vigília na casa de Suelângela. Vi o sol se pôr sobre uma Palmares que estava afundando, e nascer sobre uma Palmares afundada.

A enchente do ano 2000 foi brincadeira de “gu-gu-dá-dá” comparada a esta. Residências do centro que há dez anos tiveram apenas o térreo coberto pela água, dessa vez foram invadidas um ou dois metros acima do piso do primeiro andar. Os ocupantes das casas invadidas imaginavam que esta enchente seria menor que a de 2000 ou, no máximo, igual. Mas foi superior. Presenciei, enquanto passeava pelo início do caos na tarde do dia 18, pessoas dizendo, às vezes em tom de brincadeira: “Essa vai ser maior que a outra!” Nunca pensei que tivessem tamanha e tão exata razão.

Antes das águas cobrirem por completo as lojas, muitos saques foram feitos, os bandidos, experientes desde a última enchente, não iam deixar tão valiosa oportunidade passar em branco.

As águas baixam

A manhã inteira do sábado (19) foi dedicada à limpeza da nossa casa. Quando nela chegamos, às 05h15, havia grande quantidade de entulho trazido pela cheia na calçada e ao pé do portão, que estava repleto de caramujos de todos os tamanhos. Boa parte da água, misturada com lama, ficou presa dentro de casa. Fizemos a limpeza sem o uso de botas (com exceção do meu pai). Eu mergulhava os pés naquela água extremamente contaminada. Mas não tinha outro jeito: tinha de mergulhá-los. Por volta das 09h00, a energia elétrica voltou. Ligamos a bomba, e a água do poço nos ajudou bastante. O serviço de água encanada do SAAE está impossibilitado de funcionar, com todo o presente caos.

Depois de limparmos a casa (não completamente, apenas tirado a lama do chão) fomos olhar o local da queda das duas pontes que atravessavam o Una para a BR 101 passar. Longa fila de caminhões se estendia na rodovia, impossibilitados de seguir viagem; habitantes dos bairros Newton Carneiro, Nova Palmares e Santa Rosa se infiltravam entre o engarrafamento. Perto de onde estávamos, bem ao lado de um dos postos de gasolina, um helicóptero de resgate pousou para abastecer.

Pela tarde, fui olhar as principais ruas inundadas (a água já havia baixado um pouco, sendo possível tomar o bairro Santa Luzia, único caminho por onde podíamos seguir para ter contato visual com o centro). Na Travessa Altino Fraga, era incessante o fluxo de veículos que descia da Rua Manoel Braga. Quase não consegui atravessar a fila. Peguei a ferrovia e, pelos trilhos, fui até à antiga estação. De lá, tive os primeiros contatos com a enchente. As águas tinham baixado bastante, mas ainda estavam acima do nível mais alto que alcançaram dez anos atrás. Tanta gente trafegava pela linha do trem, ao lado do Santo Onofre, que era impossível caminhar rápido. O ritmo dos passos era devagar quase parando. No Alto do Inglês, encontrei minha mãe e meu pai, que estavam com Mariana e minha avó. Vieram, como eu, olhar a inundação. A ladeira é o melhor ponto para se observar as cheias que de vez em quando destroem a cidade, por isso, vira camarote em todas as enchentes. De lá, seguimos, ainda, sempre pelos trilhos, até o pontilhão que atravessa a Avenida Frei Caneca. Em todos esses locais a multidão era uma só, admirando a destruição da própria cidade. Sem interrupção, helicópteros da Defesa Social de Pernambuco sobrevoavam as ruas, resgatando pessoas ilhadas. Os bombeiros tripulantes conduziam a vítima para dentro de uma cesta pendurada por um longo cabo abaixo da aeronave. Enquanto isso, na água, outros bombeiros, usando botes inflados, resgatavam gente ilhada em áreas mais acessíveis. Um helicóptero das forças armadas também prestava assistência. Tinha um motor de um barulho que, igual, eu só tinha ouvido no cinema.

O Campo da Rede e o Barreto Hall, ambos no Santa Luzia, ficaram funcionando como aeroportos dos helicópteros de resgate. Era onde as vítimas pousavam para receberem assistência médica se preciso. A população formava verdadeira plateia enquanto acompanhava de perto o incessante pouso e decolagem das aeronaves, veneradas pelo público como deuses. Para um povo carente de vida cultural, o espetáculo da chegada aérea de vítimas era o melhor de todos os teatros.

A face da desolação

Eu nunca havia presenciado a destruição de uma cidade. Acompanhei a enchente de 2000, mas, como já disse, aquela não passou de uma brincadeirinha da natureza. Esta deste ano fez o que bombas lançadas de aviões fariam. Bombas potentes, devastadoras! Quando, na tarde do domingo (20), saí com minha mãe, pés calçando botas, para visitar os locais que ficaram embaixo d’água, a sensação imediata que tive foi de visitar uma cidade atingida por forte terremoto ou bombardeada. O que teimava em nos lembrar que toda aquela devastação foi provocada por água era a lama negra que o tempo inteiro pisávamos e que, em algumas ruas, já virava poeira. Postes tombados por todos os lados, vários deles partidos, fios espalhados pelas ruas, os que ainda estavam no alto encontravam-se repletos de entulho neles dependurados. As ruas estavam quase intransitáveis para os pedestres. Em verdade, não se pode falar de pedestres, éramos visitantes de um mundo desconhecido. Casas destruídas inteiramente tinham suas paredes espalhadas pelo meio das ruas, cujo asfalto de quase todas teve boa parte arrancada do chão, formando grandes buracos em diversos lugares, alguns tão profundos que chegavam a comprometer a estrutura das casas que restavam de pé. Árvores arrancadas, quase enterradas em entulho, lama e areia. Em muitas ruas havia verdadeiros bancos de areia, trazidos e moldados pela correnteza. Carros novos destruídos, motos parcialmente enterradas em destroços, roupas, geladeiras, manequins de lojas, coisas de farmácias, tudo isso se via pelo caminho. Parte do madeirame do telhado de casas estava preso em árvores, que também tinham entre os galhos mesas e traves enormes. Ruas por onde sempre andei estavam irreconhecíveis, quem nunca as viu antes e visse uma fotografia delas, não acreditaria serem as mesmas. A biblioteca municipal foi o primeiro local que determinei para visitar. Fiquei feliz por vê-la no lugar onde sempre esteve e, principalmente, inteira. Tomara que os livros tenham se salvado.

Quando cheguei em frente a prefeitura, procurei a Praça Ismael Golveia e tomei tremendo susto quando percebi que ela simplesmente desapareceu e, no seu lugar, só restou uma colossal cratera, cheia de água na parte mais funda, onde se via um caminhão submerso de ponta cabeça, apenas com as rodas descobertas, e alguns outros carros menores também tragados pela abertura. Importantes estabelecimentos palmarenses desmoronaram por inteiro, tais como a AABB, a ACP, o colégio Fernando Augusto Pinto Ribeiro e a escola Peter Pan. Numerosas famílias perderam tudo. Muitos, achando que a água não iria atingir o primeiro andar, puseram aí seus pertences, mas a enchente chegou a cobrir prédios inteiros. As ruas de maior devastação, com maior número de construções desmoronadas, foram a Rua Capitão João Galdino, Avenida Visconde do Rio Branco, Rua Ascenso Ferreira, Avenida José Américo de Miranda, Rua Conselheiro João Alfredo, Rua Ulisses de A. de Oliveira e praticamente todas as ruas da parte do centro conhecida por Pedreiras. Essas são as que se situam mais próximas ao rio e, por isso, as que enfrentaram maior correnteza quando a água as invadiu.

A cidade se acabou completamente, sem exageros literários, como Pompeia, Porto Príncipe, Atlântida.

Alarme falso

Por volta das 17h00, no exato instante em que a Seleção da Costa do Marfim fez seu único gol no jogo contra a nossa Seleção, segunda rodada da Copa do Mundo, nesse exato instante a cidade de Palmares inteira – ou o que dela sobrou – entrou em pânico com o falso alarme de que a Barragem do Prata havia estourado. A gritaria em todas as ruas era total, gente desesperada correndo a puxar os cabelos, chorando, pessoas idosas sendo carregadas nos braços, motos em alta velocidade pelas calçadas, engarrafamentos com motoristas impacientes buzinando forte, pneus ciscando. E, em meio a tudo, a multidão correndo, todos se dirigindo a lugares elevados. Daqui de casa corremos todos também; saí levando Micke na coleira; minha irmã saiu chorando, levando um saco de roupas preparado de improviso; minha mãe saiu com o lorinho na gaiola; minha avó correu com uma caixa de sapatos onde guarda documentos importantes; meu pai acreditou na história, mas eu não. O tempo todo eu sabia que as pessoas tinham entrado em pânico levadas pela conversa de um boato, as rádios diziam sem parar que não existia nenhuma informação oficial, senão os primeiros a serem contactados, caso fosse verdade, teria sido os órgão da imprensa. Mesmo assim, corremos, junto com a multidão desesperada, para uma colina do nosso bairro e, na esquina da creche do Pe. Ângelo, iniciamos a subida. Alguns estavam tão nervosos, como o namorado da minha irmã, por exemplo, que chegavam a ver, imaginando, a água invadindo as ruas, o que os fazia correr ainda mais. Esse momento foi idêntico à cena do filme Impacto Profundo, onde Leo Biederman e Sarah Hotchner sobem uma colina para se protegerem da devastadora enchente provocada por uma onda gigante. No resto da cidade, pessoas morreram de infarto causado pelo medo, outras sofreram ferimentos. Ficamos algum tempo sentados numa calçada acima da Rua Rui Barbosa, até todo o povo se convencer do alarme falso e voltar para suas casas – quem ainda as tinha.

***

Vou terminar este relato falando do Cine Teatro Apolo. Sim, foi destruído mais uma vez. Tão ansioso que eu estava para assistir a uma peça nele!...

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