sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Oração de um ateu moderno

Querido Deus, não creio na vossa existência. Queria crer, mas não creio. Não acredito que possa existir um mundo “magicamente” invisível, onde vivem seres espirituais. Isso não quer dizer que repudio a “magia”; quando busco contentamento com transcendentalismo, vou ler Harry Potter! Não acredito que existis, oh poderoso Deus! O mundo e o homem, para mim, não fornecem aquilo que vosso Catecismo chama de “argumentos convergentes e convincentes” que provam a vossa existência.

Querido Satanás, também não creio na vossa existência, o que é óbvio. Se não creio no Todo Poderoso, vosso arquiinimigo, não acredito que possa haver espírito algum. Sois, para mim, pois, tão real quanto Deus, oh poderoso Pai da Mentira! Sobre vós e com vós, não há muito que conversar. Dai-me licença para eu voltar a falar com o Criador.

Bom Deus, acho que está na hora de vós reconhecerdes que não existis ou substituirdes a  por coisa mais convincente. No passado, a humanidade sentia que necessitava da crença num ser superior; hoje, não mais precisamos dessa crença. Quem a adota, age mais por puro dualismo ou cortesia do que por pura sinceridade ou fé. Ademais, cada pessoa é livre para ter vergonha do que quiser, e a objeção de consciência é assegurada pela lei.

Eu queria crê em vós, mas não posso. Como reflete sabiamente Dan Brown na boca de Robert Langdon em Anjos e Demônios, “ter fé requer entrega, aceitação cerebral de milagres, como a Imaculada Conceição e a intervenção divina. E existem ainda os códigos de conduta. A Bíblia, o Corão, as escrituras budistas, em todos há exigências semelhantes. Determinam que se eu não viver de acordo com certo código, irei para o inferno. Não consigo imaginar um deus que governe desta maneira”.

É impossível, poderoso Deus, que eu creia em vós. A razão me fez enveredar por um caminho sem volta. Vivo as virtudes humanas, a moral, ajudo as pessoas necessitadas, sou exemplar cidadão, mas vós sois inexistente para mim. A vossa existência, em verdade, é igual a das sereias. Sois fruto da imaginação humana. E que imaginação! Até atribuíram à vossa intervenção dezenas de livros, escritos no contexto de guerras, revoltas e revoluções sangrentas. O homem é que vos faz diariamente, não fostes vós que fizestes o homem.

Numa dessas aventuras escritas há cerca de 2000 anos, um personagem que chegou a caminhar pelas águas diz que, ao orarmos, o melhor a se fazer é nos trancar em nosso quarto e falar a vós em silêncio. É uma recomendação importante, pois confesso-vos que o que aqui estou falando não diria nem às paredes. Isso porque vivo num país subdesenvolvido. Vós, que tudo sabeis, sois ciente de que é mais fácil ser ateu num país desenvolvido. Se eu expressasse meu ateísmo abertamente entre o meu povo, seria vítima dos mais criativos preconceitos. Chamar-me-iam de endiabrado, teriam medo de mim etc. Mas aprendi com vosso texto sagrado a valorizar os ditames da consciência; sendo assim, guardarei meu ateísmo no fundo do coração.

Aprendi, enfim, a não desperdiçar meu tempo pensando que vós existis. Aprendi que seguir doutrinas religiosas é tão útil quanto enxugar gelo. A religião nada mais é que um tipo de droga, uma tentativa de enganar a razão para que fiquemos uns instantes livres da realidade problemática.

Vosso Catecismo diz ter o homem sede de vós. É verdade: temos sede do infinito. Outro motivo não nos levaria a construir o LHC! Para os que buscam esclarecimentos na realidade irreal, tentam imaginar um Deus. Os cultos religiosos unem indivíduos de interesses afins, mais ou menos como acontece nas comunidades do Orkut. Entretanto, os interesses podem ser semelhantes, mas a imaginação, não. Cada pessoa tem seu próprio Deus. O Deus de um empresário católico, por exemplo, é infinitamente diferente do Deus de um empregado católico. O mesmo acontece em todas as religiões: na mente de cada humano, vós sois o que a história da vida do indivíduo determinar. Em outras palavras, temos pouco mais de 6 bilhões de deuses neste mundo.

A religião, hoje, bom Deus, assemelha-se muito às multinacionais. Todas enfrentam forte concorrência, exigindo cada vez mais serviços de marketing eficientes. Os sermões são propagandas publicitárias, coisa na verdade percebida por qualquer ouvinte que seja capaz de distinguir neles os muitos verbos no imperativo. Além do mais, se vós me permitis dizer isso nesta santa oração, seria bom se os estudantes de publicidade ouvissem atentamente as homilias, pois aprenderiam técnicas de persuasão inimagináveis nas aulas da faculdade. A certeza dos dogmatistas exige a mais alta habilidade de persuadir os outros, afinal de contas, não existe outro meio de “evangelizar”...

Mas eu sou invisível e imaterial à evangelização. A minha certeza está no que é incerto, no que está aberto a contestação. Quanto mais algo se diz ser dogmático, mais estará negando a própria realidade. É como quem jura três vezes antes de falar, a fim de forçar outros a crê nas palavras. O dogmatismo tem suas bases em si mesmo. Se sofre uma vertigem, para não cair no chão segura-se no próprio corpo. Não existe paredes na casa do dogmatismo, nem mobília. Será que conseguirá se manter de pé? Enquanto isso, a ciência, que de fato muda radicalmente a natureza e o homem, está aberta a todo tipo de contestação. Se cambaleia, nunca cairá, pois sua casa tem muitas paredes e mobília onde ela possa se apoiar. A ciência não jura, somente fala e mostra as provas. É a verdade, nada mais.

Pai onipotente, digo-vos que as pessoas precisam descobrir o ceticismo que possuem. Precisam aprender a não acreditar na vossa existência. Ninguém crê numa mesma coisa para sempre. “Quem não tem teto de vidro, que atire a primeira pedra!” Vós mesmo mudais a cada dia na mente dos que dizem crê em vós. Antes, mandáveis para o inferno os que se suicidavam. Hoje, sois bem mais misericordioso. Amanhã, quem sabe até tolerareis o uso de preservativos ou práticas piores. O certo é que vais ficando mais misericordioso com o passar dos dias.

Mas ainda vos chamam de Deus. Ainda rezam a vós. Por isso, também rezei, na certeza de que não me ouvis porque não existis.

Amém.

Nenhum comentário: